Dívida e Desejo. Dois machados cristãos e a deriva patológica, famoso livro de Antoine Vergote, publicado em 1978 (Imagem: Divulgação).

A contribuição da obra de Antoine Vergote para o pensamento da antropologia teológica à luz da psicanálise é um achado atemporal. Também conhecido como Antoon Vergote, este importante autor foi um padre católico romano belga, teólogo, filósofo, psicólogo e psicanalista. Além disso, foi docente da Universidade Católica de Lovain, na Bélgica. Suas extensas publicações abrangem várias disciplinas, incluindo psicanálise, hermenêutica, antropologia filosófica, linguística, teologia, antropologia cultural e fenomenologia.

Sua obra é tão imensamente complexa e vasta (300 artigos e sete livros, sem contar as compilações de artigos) que pode ser abordada sob diversos ângulos (psicanálise, psicologia religiosa, filosofia, teologia). O ângulo teológico diz respeito à exegese, sacramental, teologia moral e à antropologia teológica. E maior parte do pensamento de Vergote sobre teologia e psicanálise vem dessa disciplina. 

O percurso e a reflexão de Vergote ilustram de forma exemplar a possibilidade de uma compreensão da fé iluminada e testada pela experiência analítica e pela teoriaA atualidade de seu pensamento não decorre apenas do significado insuperável do psíquico e, particularmente, da problemática edipiana. 

Deve-se também à sua contribuição para o diálogo entre fé e cultura contemporânea, à sua ênfase no papel estruturante do direito e da paternidade em um contexto em que esse papel está em crise e, no contexto inter-religioso, à sua contribuição para pensar a a especificidade e os fundamentos da fé bíblicaAjuda a dar contadimensões profundamente humanas e transcendentes da fé cristã, quando essas duas dimensões são talvez mais contestadas do que nunca. 

E isso, de uma forma que constitui um modelo de articulação entre psicanálise e teologia, sem reducionismo ou dualismo, sem psicologismo ou espiritismo. Para Vergote, o  advento da psicanálise trouxe à Teologia a compreensão de que os possíveis poderes sobrenaturais, sobre os quais a consciência religiosa se pronuncia, não se justapõem aos poderes psíquicos e que sua possível causalidade se insere nas vicissitudes humanas. 

Ele entende que, onde a demonologia pensava reconhecer uma contra-natureza sobrenatural, a psicologia clínica descobre as manifestações da natureza psíquica, rompendo com o pensamento cristão de até então, que compreendeu ao longo da História muitas manifestações de saúde mental justificando-as sobre o pretexto do mal. Ao desmitologizar a crença na possessão diabólica, a psicologia clínica deixou a liberdade de acreditar na obra do Maligno, mas retira seu suporte para ela não visível. Por mais inexplicáveis ​​que permaneçam os fenômenos patológicos subjacentes, Vergote defende a posição de que não se podia alojar um poder sobrenatural nos interstícios da psicologia. 

Fronteiras entre a Psicanálise e a Teologia

De si mesmo, a psicanálise obviamente nada tem a dizer sobre o sentido da fé, mesmo que a maneira como o crente a apropria não fique fora do trabalho analítico. Nascida do encontro entre o Deus que excede a razão e a vida psíquica que excede as intenções conscientes, a fé vivida transborda o universo inteligível e sua aproximação é incerta. Os sinais divinos descem às nossas profundezas imemoriais e conferem-lhes a sua densidade pulsional. 

Do ponto de vista teórico, os significantes da linguagem religiosa compõem um todo ordenado e parecem participar da imutabilidade do Eterno, como um céu tecido de constelações. Mas “a fé não é a contemplação de verdades teóricas que são externas à nossa substância carnal. Como consentimento a um Deus vivo, a fé traz Deus para a realidade psíquica e a leva para os sinais divinos”, afirmou em Dívida e Desejo. Dois machados cristãos e a deriva patológica, livro publicado em 1978, considerado seu maior trabalho como pesquisador. 

Para o autor, ao envolver o homem muito além de sua razão lúcida, a fé também se enche de forças obscuras e palavras veladas que habitam o corpo psíquico. As vicissitudes da psique e as da fé estão, portanto, unidas. Consequentemente, a compreensão da fé passa pela elucidação do drama psíquico e a consideração da ordem da fé esclarece as leis e acontecimentos do psiquismo. 

Certamente, esta obra-prima do autor defende ideia de uma saúde sem perturbações e a de uma autenticidade religiosa sem sombras são apenas fantasmas de uma omnipotência blindada. Para ele, o desejo que quer ser puro de toda ilusão não sustentará a paixão que o anima e onde se encontram raízes escuras e sinais luminosos, além de vozes antigas e do chamado daquele que vem. Afinal, Vergote é o autor da famosa frase: “o desejo que se vigia com rigor demais e não confia nele na parte incerta da desrazão jamais conhecerá o tempo do amor e do gozo”. 

De intiligência louvável, Vergote foi aclamado como sendo a figura mais eminente no campo da psicologia da religião e “uma figura chave” nos movimentos intelectuais europeus durante o século XX. Certamente, uma inspiração para quem se debruça diante de pesquisas nesse tão importante campo de inclusão da Teologia, à luz da psicanálise.