Covid-19: onde podemos encontrar abrigo e vacina?

O confronto consigo mesmo pode ser extremamente profundo

Ana Beatriz Dias Pinto


O confronto consigo mesmo pode ser extremamente profundo neste tempo de isolamento. (Imagem: Pixabay)

A sabedoria antiga e os textos bíblicos nos contam que em tempos de precipitação, o sábio constrói abrigos e os edifica sobre a rocha. Enquanto que o imprudente planeja suas incertezas sobre a areia.

A palavra abrigo surgiu curiosamente somente no ano de 1585. É um termo “de origem anterior desconhecida”, conforme aponta o dicionário Oxford. Parece ter significado primeiro de “escudo”, um estado de estar protegido. Mas não tem raízes gregas ou latinas como a maioria das nossas palavras e, tampouco, nada do inglês antigo ou alemão médio. 

Abrigo é palavra que emerge em escritos épicos como os de John Milton, de 1667, quando faz referência à Arca de Noé em seu poema Paraíso Perdido, ou na frase incólume de Shakespeare: “Que venha uma tempestade de provocações, eu me abrigarei aqui”. É, portanto, uma palavra decididamente moderna e desajeitada, que tenta falar sobre necessidades físicas e emocionais, dirigida às necessidades igualmente dos tempos modernos. Afinal de contas, não é o habitante das cavernas que precisa de abrigo e identidade, mas nós, seres humanos da modernidade.

Se pensarmos na lógica de Aristóteles, filósofo que viveu 400 anos antes de Cristo, qual seria nossa possibilidade de nos relacionar com o mundo, de vivermos de modo virtuoso e ético, solidificado, abrigado? O que hoje, no século XXI, nos dá verdadeiramente abrigo? Hoje em dia, o que transforma a vida em uma morada humana? O que protege os seres humanos para que possamos nos tornar ou permanecer humanos? O que nos permite, em nossos próprios domínios tecnológicos, nos estabelecer, nos sentir em casa, para abrir um espaço interior para um eu mais profundo? O que contribui para a sensação de pertencer e estar em nossa verdadeira casa?

Certamente, nosso desafio de proteção mais atual e que nos faz desejarmos “abrigo, casa e proteção” tem nome: Covid-19. Sim, a pandemia de coronavírus é um exemplo claro do quanto o ser humano se sente inseguro em meio a situações desafiantes à sua existência. A maioria de nós tem sentido essas questões de forma mais aguda e urgente nos últimos meses, quando precisamos nos abrigar dentro de casa. Mas, não apenas num lar no sentido físico, mas também numa dimensão psíquica e espiritual.

E aí muitos de nós vivemos grandes dilemas. Talvez possamos encontrar algum consolo em saber que essa mesma questão, décadas anteriores, foi apontada por grandes poetas e filósofos da história da humanidade, como Heidegger. Ele diz que nós só nos sentimos em casa “quando nos refugiamos na morada mais primordial existente: aquela construída em nossa interioridade”.

Assim, nosso modo de nos relacionar com o abrigo, o lar – e mesmo nossa “casa em quarentena”, demonstram uma relação de interdependência. Justamente, porquê o espaço fechado da casa revela nossos ruídos pessoais, em seus interiores restritivos, côncavos, que paradoxalmente permitem que nossa alma se isole ou se expanda. Seguimos em restrições, entre bandeiras amarelas e alarajandas, e enquanto estamos fechados para o mundo, nos deparamos trancafiados conosco mesmos.

Quando acaba o barulho externo, podemos ouvir o barulho interior. Ao confrontar nossa própria moradia, nos permitimos entender o valor de itens que antes do Covid-19 podiam estar um tanto quanto viralizados dentro de nós: silêncio sufocado, sono aprisionado, solidão ignorada, sonhos adiados e a importância de termos uma casa que nos abrigue e não nos sufoque. Um lar que seja cabana, ninho ou concha; que nos permita cantos,  curvas e experimentar a suavidade do vento da vida.

Com base na segurança de nosso lar pessoal, podemos não apenas enfrentar o mundo vasto e selvagem com mais segurança, mas também sonhar além de seus limites. É certo que nestes tempos de avanço da tecnologia, as teorias críticas escaparam dos laboratórios  e estão infectando a população com novas formas de se retaliar o mundo, a fé e – incrivelmente – de se criticar a ciência.

Buscamos tanto por uma vacina, por abrigo e respostas para os dilemas da vida, que de alguma maneira talvez acabamos refutando que para isso tudo ocorrer, precisamos não somente de construções físicas, mas também de deduções, hipóteses, testagens, evidências ou atos de fé.

A solidão concentrada neste período de isolamento pode nos ajudar a aprofundar a familiaridade conosco mesmos. Ela escava todas as vozes anônimas que povoam nossos pensamentos. À medida que encontramos nossas vozes do presente e também do passado, algo pode acontecer. Este momento de isolamento pode ser causa de estranheza, ou mesmo do suspiro em pelo simples fato de (ainda) estarmos vivos.

Veja bem: alegria não é felicidade. Alegria não é contentamento, mas sabedoria. Ela nos ajuda a aliviar a dor de sermos forçados a buscar abrigo. A lidar com o tempo e com os perigos do momento presente. Hoje, a alegria de pandemia tem sido o prazer que escapou da armadilha do temporário.

Perceber que eu, de algum modo posso ser ou estar “sem teto” tem seu lado positivo. Esta fase de isolamento pode nos ensinar a capacidade de nos (re)construir, (re)habitar e realizar. Mesmo que trancafiados – e ainda que hiper-conectados –  é na escuta de nossas inquietações que encontraremos respostas para fazer cair nossas máscaras pessoais e confrontar questões interiores que precisam de vacina e imunização.  

Que tal começar hoje? Busque redescobrir seu verdadeiro lar! Faça uma boa leitura interior, organize prioridades e estabeleça pontos a melhorar. Viva esta oportunidade de quarentena com sabedoria! Gostou deste artigo? Compartilhe-o em suas redes sociais! 

Ana Beatriz Dias Pinto, é comentarista convidada do blog e nos traz reflexões sobre temas atuais e contextualizados sob a ótica do universo religioso, de maneira gratuíta e sem vínculo empregatício, oportunizando seu saber e experiência no tema de Teologia e Sociedade para alargar nossa compreensão do Sagrado e suas interseções.