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Podemos dizer que a perplexidade da nação com relação ao ocorrido na semana passada ainda paira no ar. Mas afinal de contas, o que aconteceu? Sinceramente, é uma tarefa quase impossível – para não dizer improvável – tentar entender a movimentação do Sr. Presidente da República e de seus apoiadores. Talvez a capa de um conhecido semanário – que parafraseou um conhecido filme – tenha conseguido expressar da melhor forma o que vivemos na semana passada: “O estranho mundo de Jair”. Muito estranho!
Dentro de toda essa estranheza, não é nada estranho – com o perdão da redundância! – que líderes radicais católicos e evangélicos tenham vaticinado semanas antes a chegada do Apocalipse. Mas o Apocalipse chegou?
Muitas e muitos pensam que Apocalipse é apenas um livro do Novo Testamento cristão, no entanto apocalipse é um gênero literário já presente no Antigo Testamento; exemplos da apocalíptica veterotestamentária são o livro do profeta Daniel e trechos do livro do profeta Ezequiel. Trata-se de um gênero literário que surgiu Judaísmo tardio, isto é, durante os períodos da dominação persa e grega depois do Exílio.
O ambiente apocalíptico deixou marcas profundas em diversos setores da sociedade de Israel no tempo de Jesus: a seita dos essênios, também conhecida como seita de Qumran, estava fortemente impregnada por mensagens apocalípticas; a atividade e a pregação de João Batista também possuíam traços nitidamente apocalípticos. Nas próprias palavras de Jesus de Nazaré, encontramos, entre tantas influências do Antigo Testamento, ideias e imagens da apocalíptica judaica. Mas afinal de contas do que se trata todo esse movimento?
Como ensinam diversos autores de Cristologia do século XX, sobretudo do pós-Concílio, um traço muito marcado da apocalíptica do Judaísmo tardio, que também se faz notar no tempo de Jesus e no próprio Jesus, é a chegada do novo éon, isto é, a instauração definitiva do reinado de Deus em Israel e sobre toda a Criação. Há trechos belíssimos no livro do profeta Ezequiel, já citado, que mostram a restauração da vida, sobretudo daquelas e daqueles que foram esquecidos pelos poderes deste mundo (Ez 36,24-26; 37,4-6).
Diante do fracasso desses poderes – entenda-se político e econômico –, a esperança popular se eleva àquele que tem o poder definitivo em suas mãos. Não se trata de um poder que subjuga ou domina, mas um poder que salva e liberta; não um poder de opressão, mas um poder sustentado pela justiça, bondade e amor. Apocalipse, portanto, não tem nada a ver com destruição e instauração de poderes dominadores, mas com a revelação (do verbo grego apokalypsein) da bondade suprema de Deus.
“O Reino de Deus está próximo” (Mc 1,14) proclama Jesus ao iniciar seu ministério público, isto é, a intervenção definitiva e amorosa de Deus na história está próxima. Deus fará justiça às injustiçadas e aos injustiçados; estará ao lado daquelas e daqueles que foram esquecidos pelos poderes deste mundo; inaugurará o novo éon, isto é, o novo tempo da justiça e do direito (Sl 33,5) para com as abandonadas e os abandonados, para com as empobrecidas e os empobrecidos.
Quando líderes radicais católicos e evangélicos incitavam a população para se erguer a favor do Capitão e proclamavam a chegada do apocalipse não estavam se referindo ao que a Escritura nos apresenta como tal. É de se imaginar que evocavam muito mais as telas de Hollywood – ou da Record –, nas quais se vê destruição, terra arrasada, vidas destroçadas. O apocalipse conclamado por esses líderes pseudorreligiosos não tem nada a ver com o Apocalipse do Deus de Jesus Cristo; trata-se do apocalipse dos homens.
Mas afinal de contas, o apocalipse de 07 de setembro chegou ou não? O do Deus de Jesus Cristo ainda não; o dos homens, ou mais especificamente, o do Capitão chegou… Enquanto seus seguidores fanatizados saíam pelas ruas e praças do país imitando “arminhas” com seus dedos e exigindo a instauração de um poder autocrático, milhões de brasileiras e brasileiros são empurrados para abaixo da linha da miséria. A fome é uma realidade cada vez mais presente nos lares de milhões de famílias. O desemprego é um flagelo que vitimiza sobretudo os jovens da sociedade. Toda essa situação de calamidade social e econômica se vê ainda mais grave com o escandaloso número de quase 600.000 mortos pela pandemia de covid-19 e a crise hídrica e energética na qual o país está entrando.
Estaria demais mencionar, em uma situação tão grave como a que vivemos, que os apoiadores do Capitão – cidadãos de bem, como gostam de ser chamados – são violentos, misóginos, racistas e homofóbicos, apoiam a destruição das matas e a expulsão de seus povos originários para que a força do agronegócio – que não tem nada de pop! – continue fazendo crescer as contas bancárias de grandes corporações.
Sim! O apocalipse chegou! O apocalipse do Capitão… Mas não chegou 07 de setembro passado, como arautos da desgraça anunciaram, chegou no segundo turno das eleições de 2018 quando a maldade dos homens, que segregam e separam, se sobrepôs à bondade de um Deus que faz o sol nascer sobre bons e maus (Mt 5,45), que derruba os muros do ódio e faz do que era divido uma unidade (Ef 2,14).
* Pe. Matheus S. Bernardes é sacerdote da Arquidiocese de Campinas/SP e professor de Teologia da PUC-Campinas.