O Gambito da Rainha: você sabia que o xadrez tem influência das religiões?

Ana Beatriz Dias Pinto

O xadrez não é apenas um jogo, é também uma metáfora útil – para inteligência, poder, estratégia geopolítica e impacto religioso no mundo. (Imagem: Netflix).

Faz sucesso nas telas dos assinantes da Netflix “O Gambito da Rainha”, série limitada instigante sobre uma mulher prodígio do xadrez nos anos 1960. De maneira interessante, a narrativa demonstra que o xadrez não é apenas um jogo, mas um estilo de vida. É também uma obra de metáfora útil para falar sobre inteligência, poder, estratégia geopolítica e análise do impacto religioso no mundo. Prova disso são as peças do tabuleiro do desafio, que possuem reis, rainhas, torres, cavalos, peões e, evidentemente, bispos. 

A série conta a história da jovem Beth Harmon, que vive  sua infância em um orfanato no Kentucky. Ali aprende a jogar xadrez com um zelador e, logo ao ser adotada, adentra no mundo masculino das competições de xadrez para ganhar uns trocados. Os desafios a levam até a Rússia Soviética, numa disputa eletrizante com o campeão mundial do jogo. 

Embora seja baseada no romance de Walter Tevis, de 1983, a série de sete episódios da Netflix se desdobra em um ritmo mais próximo ao da televisão episódica aberta, desperdiçando tempo com detalhes de época que não necessariamente alimentam o drama central do seriado. Porém, tem sido campeã de audiência e garantido a procura de muita gente pela compra de tabuleiros e por aprender as regras do jogo.

Relação do xadrez com a cultura religiosa

O xadrez antigamente era chamado de “jogo dos reis” e uma lenda cristã atribuiu sua invenção ao Rei Salomão. Já uma lenda hindu diz que ele foi criado por um homem sábio, que inventou o jogo para instruir um rei tirânico chamado Shimram, sobre como seus súditos realmente eram: daí a variedade de personagens no tabuleiro.

Na verdade, o xadrez é produto combinado de pelo menos quatro culturas religiosas diferentes. Sua origem parece ter sido em um jogo de guerra do norte da Índia chamado Chaturanga. As peças originais foram designadas como os quatro tipos militares da época: cavaleiro, infantaria, elefante e carruagem. Eles seriam os ancestrais das nossas peças modernas: cavalo, peão, bispo e torre.

Aliás, a palavra árabe para o “elefante” era “Al-Fil”, que se transformou em “bispo”. Talvez porque os elefantes fossem guerreiros poderosos e os bispos medievais fossem homens poderosos que controlavam terras e tropas. Há uma articulação evidente aí. Além do mais, os militares tinham à sua disposição o soldado da infantaria, em árabe, o “baidaq” ou em inglês, o “peão”, que geralmente são os primeiros a morrer na disputa.

No século 15, na Espanha, as regras do jogo haviam se tornado bastante padronizadas, em parte graças ao desenvolvimento da imprensa. Algo que a trama do Gambito da Rainha narra muito bem.Embora seja comumente dito que o xadrez foi para a Europa como resultado das cruzadas, ele chegou ao continente europeu por várias rotas, principalmente através do comércio com a Espanha, Rússia e os Bálcãs.

Nesse ínterim, é fato que o jogo de xadrez e a religião nem sempre se deram bem. Em um momento ou outro, ele foi proibido por muçulmanos, católicos romanos, anglicanos, judeus, puritanos e talibãs – mesmo tendo seu nascimento fomentado por muitas dessas culturas.

Curiosidades sobre proibições do jogo do xadrez

Em 1005, o xadrez foi proibido no Egito e todos os conjuntos e peças de xadrez foram condenados a serem queimados. Em 1061, o cardeal Damiani (1007-1072) de Ostin proibiu o clero de jogar xadrez. Ele até escreveu ao Papa reclamando que o xadrez estava sendo jogado por alguns clérigos e leigos. 

Em 1093, o xadrez foi condenado e proibido pela Igreja Ortodoxa Oriental. Em 1125, o monge ortodoxo oriental John Zonares emitiu uma diretiva proibindo o xadrez como uma espécie de devassidão. Em 1128, São Bernardo de Claravau (1090-1153) proibiu os Cavaleiros Templários de jogar xadrez.

Em 1195, o rabino Maimônides (1155-1204) incluiu o xadrez entre os jogos proibidos. Em 1208, o bispo de Paris decretou que o xadrez fosse banido do clero. Em 1240, o Sínodo de Worcester da Inglaterra proibiu o xadrez ao clero e às ordens monásticas. Em 1254, o rei Luís IX emitiu um édito religioso proibindo o xadrez como um jogo inútil e enfadonho.

Em 1291, o arcebispo de Cantebury ameaçou colocar o prior e os cônegos em uma dieta de pão e água, a menos que eles desistissem de jogar xadrez. Os padres foram proibidos de jogar xadrez até 1299. Em 1310, o xadrez foi proibido ao clero na Alemanha por decreto do Conselho de Trier. Em 1328, alguns líderes judeus permitiram que o xadrez fosse jogado, mas não por dinheiro ou jogos de azar.

Em 1329, o xadrez foi proibido pelo clero no Sínodo de Wurzburg, na Alemanha. Em 1375, o rei Carlos V da França, sob a influência da igreja, proibiu o xadrez. Em 1500, o xadrez era um passatempo reconhecido pelos judeus no sábado. Em 1551, os principais clérigos da Rússia compilaram a Coleção Stoglav, que incluía a proibição do xadrez. No século 16, Santa Teresa de Ávila (1515-1582) foi proclamada padroeira dos jogadores de xadrez pelas autoridades da Igreja na Espanha. No final do século 16, os clérigos da Rússia associavam o xadrez com bruxaria e heresia. Os puritanos detestavam o xadrez e desencorajavam qualquer jogo de xadrez.

Em 1981, o xadrez foi proibido no Irã pelo aiatolá Khomeini. Foi permitido pelo Ayatollah em 1988. O xadrez foi proibido pelo Taleban no Afeganistão por 15 anos. Foi proibido pelo mulá Mohammad Omar. Papas que jogavam xadrez incluíam Leão X, Leão XIII, Gregório VI, Inocêncio III, João Paulo I e João Paulo II.

A figura do bispo no xadrez: líder religioso presente no tabuleiro

O bispo é uma peça de xadrez de longo alcance que pode ser surpreendentemente poderosa se usada corretamente. Como a maioria das pessoas sabem, é uma peça com um topo arredondado e uma breve fenda diagonal. Na regra geral do xadrez, há quatro bispos no total em um tabuleiro, sendo que  cada jogador pode utilizar dois bispos. Cada um tem um valor de três pontos, o que o torna igual em valor relativo a um cavalo.

Um bispo é menos valioso que uma torre, pois ela se move em qualquer direção, horizontal ou vertical, e não é restringida por sua cor de saída no tabuleiro. Contudo, o bispo é a única peça além do rei e da rainha que pode se mover diagonalmente em qualquer ponto (um peão pode se mover diagonalmente apenas ao capturar outra peça). Interessantemente, o bispo fica ao lado do rei, elemento que denota o quanto na Idade Média, especialmente, a religião estava muito próxima à política e ao poder. Outra curiosidade: bispos geralmente, ao longo da história, tinham um papel significante nas guerras, nas sociedades e na gestão das primeiras fortalezas, que mais tarde vieram a se tornar feudos, burgos e depois cidades.

No Gambito da Rainha, há uma cena em que, para conseguir patrocínio e viajar para disputar o torneio mundial na República Soviética, Beth Harmon recebe apoio de uma liga cristã – contanto que aceite criticar o comunismo russo. A cena é uma prova contundente do quanto, na narrativa e na vida real, a religiosidade ainda contém invólucros com movimentos precisos, diagonais, na conquista por poder e legitimação doutrinal.

Não espere demais do enredo, mas vale à pena adentrar no Gambito da Rainha! Acomode-se de maneira aconchegante em seu apartamento no Água Verde, estoure sua pipoca, vá para a frente da TV e dê seu xeque mate para maratonar nessa série! 

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    * Ana Beatriz Dias Pinto, é comentarista convidada do blog e nos traz reflexões sobre temas atuais e contextualizados sob a ótica do universo religioso, de maneira gratuíta e sem vínculo empregatício, oportunizando seu saber e experiência no tema de Teologia e Sociedade para alargar nossa compreensão do Sagrado e suas interseções.