Frei Vicente Artuso denuncia as polarizações, a violência e a intolerância em nome da religião. (Imagem: arquivo pessoal)

Polarizações, violência e intolerância em nome da religião. Reflexão em vista de uma inserção social da prática religiosa à luz dos Evangelhos

Inicio esse artigo expressando solidariedade aos que são atacados por defenderem o diálogo e o compromisso com a fraternidade, sensíveis aos clamores dos que sofrem. Me refiro a especialmente a uma live sobre a campanha da fraternidade no dia 26/02/2021, com a participação de membros do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs) do qual a Igreja Católica faz parte.

Nessa ocasião houve ataques à Campanha da Fraternidade e a pessoas. Essa oposição com os mesmos ataques aparece em todas as falas dos bispos nas redes sociais.  O que se requer é serenidade de ânimo para dialogar com as diferenças e diversidades.

Diálogo supõe calar, ouvir e trocar impressões sobre os acontecimentos para abordar os fatos de forma construtiva. Numa sociedade plural, que se diz democrática, o diálogo construtivo em torno de graves problemas sociais, requer escuta e ponderação. Porém, o que se observa são polarizações, violência em nome de Deus.

Me refiro à forma de polarização em relação a uma Teologia que acentua apenas a doutrina e uma relação vertical com Deus que ignora a inserção social. Nesse caso, o Deus que apresentam é surdo ao clamor do povo, insensível, fechado na sua onipotência! O Deus revelado em Jesus foi sensível ao clamor do pobre Lázaro que jazia na porta do rico (Lc 16,20).


O mal da polarização

Essa postura unilateral foi combatida pelos profetas e por Jesus. A teologia do “só eu e meu Deus” pode alimentar um egoísmo sem compaixão com o próximo. Essa religião pode se tornar fuga da realidade, alienação diante dos problemas e conflitos. Abandona-se os problemas na mão de Deus para que ele resolva sozinho, sem tomar iniciativa, ou se atribui as desgraças do mundo ao demônio como o maior responsável pelo mal no mundo.

Os catecismos cristãos, para citar os mais conhecidos: Catecismo de Lutero, o Catecismo de Trento, o Novo Catecismo da Igreja Católica, todos se compõem de partes complementares:  o que se deve crer que é o símbolo apostólico (quid credendum) não está separado do dever de praticar os mandamentos (quid faciendum). Em outras palavras, a teologia dogmática – das verdades de fé – no credo, é seguida da teologia moral, da teologia prática.

Esse binômio crer e praticar, também consta na teologia judaica com a hagada (a narração da história) e a halaca que indica como caminhar na lei. O discurso teológico sobre Deus tem uma dimensão vertical e horizontal, muito além de certas concepções cristalizadas. Olhemos para a natureza, e nela se reflete a providência de Deus, como relata o Evangelho: “Deus faz chover tanto para os bons como para os maus, tanto sobre justos como injustos” (Mt 5,45).


A justiça de Deus nas Escrituras

A gratuidade de Deus se faz presente sem medida, sem limites. A justiça de Deus vai além e ultrapassa a justiça medida pela lei. Portanto a religião insere o crente no mundo, na sociedade. Ali ele crê, pratica e celebra a sua fé inserido, e capaz de colaborar e fazer a sua parte.

Reforço ainda: a relação com Deus, e a experiência de Deus nas celebrações litúrgicas ou na oração pessoal não estão separadas da experiência vital, das lutas e sofrimentos do dia a dia. Foi assim desde a origem do cristianismo. O próprio Jesus que se retirava com frequência para orar no deserto (Mc 1,35) buscava refazer as forças para a missão. Na sua dura jornada de Cafarnaum curou a muitos: o possesso, a sogra de Pedro, o leproso.

Os Evangelhos testemunham essa profunda inserção social de Jesus, preocupado com falta de pão, com os doentes de toda sorte: os pecadores, os leprosos, cegos, paralíticos, possessos. Justamente por esta profunda ligação com Deus na oração, ele era movido de compaixão. Assim foram na história tantos que se santificaram seguindo Jesus: São Francisco de Assis, São Vicente de Paula, Santa Dulce dos pobres aqui no Brasil, dentre outros.

Eles viveram o Evangelho e tinham consciência do que disse Jesus: “O que fizerdes ao menor dos meus irmãos é a mim que fazeis” (Mt 25,40). Muitas vezes foram incompreendidos e atacados. Destaco Dom Helder Câmara, perseguido especialmente no tempo da ditadura militar. Ele mesmo dizia: “Se ajudo um pobre me chamam de Santo, se questiono o motivo da pobreza me chamam de comunista”.

Assim o sistema politico da época usava a religião intimista, para se consolidar. E quem tinha iniciativa de formar a consciência crítica do povo era taxado de comunista. E essas acusações de comunista ou abortista são chavões usados no discurso extremista e violento, dirigidos a pessoas cristãs que levantam sua voz contra as injustiças.

Feminicídio, tráfico de mulheres, violência, racismo, indiferença, armamento, destruição da natureza, drogas, fome e miséria. Tudo isso faz parte do “pecado do mundo”. São males que clamam aos céus!

Dizia o Pastor luterano Dr. Milton Schwantes: “A Palavra fede, tem cheiro forte”. Estudioso que era do profeta Amós, recordava a necessidade de ouvir o clamor do povo que sofre, pois o direito de Deus é preservado quando se defende o direito do pobre, daquele que fede pelas ruas ou catando comida no lixo. Como não acolher e reconhecer tantas instituições, organizações engajadas e que tanto bem fazem? Como fazer uma teologia que sensibilize para o bem, uma teologia mais aberta que vença essas barreiras e muros para um diálogo mais construtivo?

Contribuições do Evangelho contra a violência

Para ajudar proponho ao leitor fazer uma leitura integral de um Evangelho. Sugiro ler integralmente o Evangelho de Marcos e responder essas perguntas: De quem Jesus se aproximou? Como ele se relacionou com as pessoas? Como ele se relacionou com Deus?

Observará o profundo respeito e ao mesmo tempo firmeza, desafiando as pessoas a se desinstalar. Ele agia movido de compaixão (Mc 1,41), e ficava indignado e entristecido com quem não reconhecia suas ações em favor da vida, como quando curou o homem de mão seca no sábado (Mc 3,1-6). Chamou duramente a atenção dos discípulos lentos para compreender: “vocês tem olhos mas não enxergam”, “não compreendem”? (Mc 8,18-19). Não teve medo de denunciar. Foi também ecumênico.

Certa feita, quando alguém expulsava demônios em seu nome, e não era do grupo dos seus seguidores, respondeu: “Não impeçais, pois não há ninguém que faça um milagre em meu nome e logo depois fale mal de mim. Quem não é contra nós é por nós” (Mc 10,39-40). Portanto, Ele enxergava valores, além dos paradigmas teológicos dos seus discípulos e dos seus adversários.

O papel da Teologia

A Teologia é diálogo em relação a Deus, na relação do ser humano com seu próximo e com Deus e com o mundo. Portanto tem uma função social.

A aliança com Deus tem duas dimensões: a relação com Deus e a relação com o próximo. “Quem não ama seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus a quem não Vê” (1 Jo 4,20). O importante é aprender a fazer teologia com olhar na Escritura que é a “Alma da Teologia”, e o olhar nos fatos contraditórios ao projeto de vida que o próprio Jesus abraçou e se comprometeu.

Esse projeto foi bem explicitado numa celebração em Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me para proclamar a remissão aos presos, e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc  4,18-19).

Com certeza, essa religião voltada ao Pai e comprometida com o próximo é a religião mais pura que agrada a Deus (cf. Tg 1,27). Não se pode valorizar apenas de um lado só a Teologia, ela tem duas dimensões inseparáveis, assim como dois lados da mesma moeda: fé e compromisso.

Portanto, fraternidade e diálogo são compromisso de amor. Eis uma proposta bem humana e divina. O Evangelho do amor não é da esquerda, nem da direita, porque é uma proposta a todos os homens e mulheres de boa vontade.

 

*Vicente Artuso é frade Capuchinho, Doutor em Teologia Bíblica e professor no Programa de Pós-Graduação da PUCPR e do Studium Theologicum Claretiano de Curitiba.