ana beatriz dias pinto
Como compreender o Espaço Sagrado e o ser humano como Ser Sagrado nos dias atuais? (Imagem: Pixabay)

Mircea Eliade (em Tratado de História das Religiões, p.7-8)  apontava o problema da delimitação entre o sagrado e o profano e dificuldade de ordem teórica e prática. Isso implica lugar sagrado do culto, pessoas com suas diferentes culturas e crenças, uma discussão retomada de tempos em tempos. Sem falar da forte manipulação política do sagrado tão frequente em nosso tempo.

Em passado recente (fevereiro de 2022) o fato da entrada imprevista de um grupo de manifestantes durante a celebração em um Templo em Curitiba. Trata-se da Igreja da Ordem, localizada no Largo da Ordem. Um lugar histórico da resistência negra. O fato suscitou fortes reações, até criminalizando os manifestantes e seus líderes. A primeira preocupação, especialmente de grupos mais tradicionais foi salvaguardar o templo material e aqueles que no momento ali celebravam. As reações também tiveram cunho fortemente político, e não foram poucos os que aproveitaram do fato para condenar o vereador. Outros, grupo bem menor, consideraram o direito de livre manifestação, legítimo por ser um protesto contra a violência a pessoas indefesas, o racismo e mortes violentas.

Este fato foi motivo até de abertura de processo contra seus líderes, mais especificamente o vereador, por ser membro do movimento da consciência negra e do partido dos trabalhadores. Motivo: violação de ambiente sagrado, isto é violação do direito a liberdade de culto sem perturbação. Essa polarização apenas na invasão do templo no momento de uma celebração não contempla o contexto da origem do fato, os reais objetivos da manifestação que era protestar contra a violência.  A onda de protestos em vários lugares era de se esperar diante de constantes violências a negros, mulheres, mendigos de rua. A violência se estende também em estádios de futebol, constituindo-se um perigo para seus frequentadores.  

Os protestos estão a indicar que boa parcela da sociedade é sensível, pois está em risco o valor mais sagrado que é a vida humana. Exercer esse direito de manifestar-se é mais que justo e necessário nesse contexto. Portanto o fato não deve ser visto apenas como violação do direito de celebração. É necessário analisar o contexto da manifestação, considerar a violação dos corpos indefesos, violentados no mundo em que vivemos. E aqui, deslocamos a atenção para a vida humana como lugar sagrado, com uma abordagem teológica. O que é mais sagrado, o templo local ou as pessoas humanas? Se o mundo é um grande templo de Deus (mundus est ingens Dei templum) como dizia Sêneca (Epist. 90.29), o sagrado extrapola as portas dos templos materiais. A visão do sagrado deverá ser antropológica, sem cair num antropocentrismo exagerado, pois somos integrados com a ecologia, somos também terra (Gn 2,7) como destaca o Papa Francisco na Laudato Si  (Laudato Si, 2, 118).

Mas voltemos a atenção ao templo sagrado da humanidade, e nesse sentido a voz do povo que protesta nessas ocasiões precisa ser interpretado como voz profética. Os profetas bíblicos anunciavam o novo, e denunciavam os desvios. Por volta de 620 antes de Cristo, o profeta Jeremias denunciava aqueles que só estavam preocupados com os ritos do templo e se omitiam na defesa da vida das pessoas mais sofridas.

Assim foi a palavra do Senhor dirigida a Jeremias aos que entravam pelas portas do templo: “Melhorai os vossos caminhos e vossas obras, e eu vos farei habitar nesse lugar” (Jr 7,3). Depois acrescenta: “Não vos fieis em palavras mentirosas dizendo; Este é o templo do Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor” (Jr 7,4). Com isso o profeta afirma que as práticas religiosas no templo de nada valem se não forem seguidas da prática do bem e da justiça.

No Novo Testamento Grego, os termos mais usados são “hieron” e “naós”, traduzidos indistintamente como “templo” ou “santuário”. Na verdade “hieron” significa em geral templo físico, e também é usado como adjetivo de coisas sagradas (1Cor 9,13; 2 Tm 3,15 –coisas sagradas, letras sagradas). O termo hieron aparece 73 vezes no NT (Mt 4,5; Mt 12,5; Mt 21,12; Mc 11,15; Lc 18,10; Lc 19,45; Jo 2,15; Jo 5,14; At 3,1-3; At 5,20-21; At 21,26-30; 1Cor 9,13 etc)  Outro vocábulo usado é “naós” , 45 vezes no NT (Mt 23,16-17; Mt 26,61; Mt 27,51; Mc 14,58; Mc 15,38-39; Jo 2,19-20; 1Cor 3,16-17; 2Cor 6,16; Ap 3,12; 7,15; etc…).

Embora por vezes signifique também o templo material (Jo 2,20-21) na maior parte significa o que é mais sagrado, a parte mais interna do templo, o santo dos santos que era separado por uma cortina ou véu. Nos evangelhos se menciona que na morte de Jesus o véu do “templo” (naós) que separava o lugar santíssimo (Santo dos Santos) se rasgou de cima até embaixo (cf. Mc 15,38; Mt 27,51; Lc 23,45). Isso significa que o rito antigo do sumo sacerdote que entrava no lugar mais santo (naós) atrás da cortina, para fazer o rito do perdão, já está superado com a vinda de Cristo. Ele com sua morte e ressurreição entrou uma vez por todas no santuário do céu e abriu a porta para todos. Portanto por meio de Cristo, do seu sacrifício, sua humanidade enfim, todos  tem acesso a Deus. Em Jo 2,19, no relato da expulsão dos vendilhões do templo, o termo usado é “naós”. Na ocasião Jesus dirá: “Destruí este templo (naós) e em três dias eu o levantarei”. E o próprio autor do Evangelho interpreta “Ele falava do templo do seu corpo” (Jo 2,21).

Portanto o corpo de Cristo, sua humanidade é o templo! Paulo dirá em Ef 2,21: “Nele (Cristo), bem articulado todo edifício se ergue em “santuário sagrado” (naós) do Senhor” Aqui a comunidade cristã é habitação de Deus, templo mais sagrado (naós) do Senhor. Em 1Cor 3,16 em forma de pergunta retórica Paulo afirma: “Não sabeis que sois templo (naós) de Deus e o Espírito de Deus habita em vós”? Depois continua com mais ênfase (1 Cor 3,17) “Se alguém destrói este templo (naós) de Deus, Deus o destruirá. Pois o templo (naós) de Deus é santo. Esse templo sois vós”. Fica claro o paralelismo entre templo de Deus santo e comunidade templo santo de Deus.

Essa fundamentação teológica se sustenta pelo princípio que a única imagem de Deus, a mais legítima é o “ser humano”, “imagem e semelhança de Deus”. Portanto se entende o uso de naós (templo como lugar mais sagrado), para expressar que a pessoa humana é sagrada que a comunidade é templo de Deus, tão sagrada como o lugar santíssimo que não podia ser profanado. A propósito em Mt 25,40 o rei  dirá no julgamento “O que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes”.

A narrativa do grande julgamento deixa claro que  o ser humano é imagem de Cristo, e Cristo é imagem de Deus. Ambrósio, bispo de Milão (séc. IV) num famoso discurso sobre a Eucaristia, interpreta o pobre como segundo sacramento, pois o mesmo que disse “Isto é meu corpo” é o mesmo que disse: “tive fome e me destes de comer”. O Padre Antonio Vieira falava da pobreza e a beatificação da misericórdia: “Na pobreza de uns e na misericórdia de outros instituiu Cristo um novo sacramento…consagrando-se neles”, os pobres (Sermão das obras de misericórdia à Irmandade do mesmo nome, em 1647).

Quanto ao templo material, expresso com mais frequência com o termo “hierón” (templo sagrado, coisa sagrada), é figura daquele templo celeste na glória de Deus. Nos templos Deus é glorificado quando as preces e o culto do povo são expressão do que realmente acreditam, e dão testemunho na prática da justiça e do bem. E a glória de Deus é o ser humano vivo (Irineu de Lião).

Deus não se compraz com a morte do pecador mas que ele se converta e viva. Enfim é preciso olhar os acontecimentos com discernimento, e tirar uma lição da história. Cada ser humano, é dom de Deus, é vida, independente de sexo, etnia, religião. A Igreja sempre se reformando busca ser “perita em humanidade” (Papa Paulo VI).  Mais que a preocupação com a ordem da celebração, a beleza do culto e da liturgia, se requer maior cuidado com os templos das pessoas humanas, e a escuta da voz profética nas ruas. Se eles se calarem as pedras gritarão (Lc 19,40)!

* Frei Vicente Artuso é Frade Capuchinho, Doutor em Teologia Bíblica e Professor de Sagradas Escrituras na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e no Studium Theologicum Claretiano de Curitiba.