Sexualidade feminina: onde há sua inclusão na teologia?

Ana Beatriz Dias Pinto

A sexualidade feminina sempre foi um tema de discussão e tabu dentro da sociedade e da religião. Durante séculos, a religião cristã moldou a ideia de que a mulher deveria ser pura, virgem e submissa ao homem, reprimindo e restringindo sua sexualidade apenas à procriação.

No entanto, à medida que os séculos passaram, o papel da mulher na sociedade também e, com isso, assim como a ciência começou a transformar a compreensão da vida por meio da religião, o tema da sexualidade também passou por uma revolução. Neste artigo, vamos explorar a história da sexualidade da mulher e como a religião influenciou esse processo. Acompanhe!

Pintura “O Nascimento de Vênus”, do pintor italiano Sandro Botticelli (1445-1510).


O Sagrado Feminino e a religiosidade

O feminino e a sexualidade humana sempre foram vistos como algo sagrado. A história da sexualidade feminina na religião remonta a milhares de anos, com muitas culturas antigas tendo uma visão muito diferente da sexualidade feminina do que a visão predominante na sociedade ocidental moderna. Por exemplo, muitas culturas antigas, incluindo a babilônica, a egípcia e a grega, tinham deusas da fertilidade que eram celebradas em festivais que incluíam rituais sexuais. Essas culturas acreditavam que a sexualidade feminina era sagrada e associada à fertilidade e à vida.

Na mitologia grega, por exemplo, a Deusa Afrodite era considerada a Deusa do amor, da beleza e da sexualidade. No entanto, com a ascensão do judaísmo e do cristianismo, a visão da sexualidade feminina mudou significativamente. Na tradição judaica, a sexualidade era vista como algo sagrado e um dever conjugal, mas também era vista como algo que deveria ser mantido dentro do casamento. O cristianismo, por sua vez, foi ainda mais rigoroso em sua abordagem da sexualidade feminina, com muitos líderes cristãos acreditando que a sexualidade era uma fonte de pecado e corrupção e deveria ser evitada tanto quanto possível.

A arte acompanhou esse processo. A obra “O Nascimento de Vênus”, de Sandro Botticcelli, é exemplo disso. Antes de pintá-la, o autor costumava retratar apenas cenas bíblicas. Foi depois de uma viagem à Roma, onde esteve exposto à muitas obras da cultura greco-romana que o autor Renascentista começou a pintar cenas baseadas na mitologia greco-roma. No centro da tela, Vênus tenta esconder que está nua. Enquanto a mão direita tenta cobrir os seios, a mão esquerda procura resguardar suas partes íntimas. A luz que recebe ressalta a sua beleza clássica, pura e casta e enfatiza ainda mais as suas curvas. Seu extenso cabelo ruivo se enrola ao longo do corpo como uma espécie de serpente e a protagonista faz uso de uma mecha para ocultar o seu sexo.

A obra de Botticelli demonstra o quanto, durante séculos, a religião cristã moldou a ideia de que a mulher deveria ser pura e casta, sem qualquer tipo de experiência sexual antes do casamento. A sexualidade feminina era vista como algo perigoso, impuro e pecaminoso, e as mulheres eram ensinadas a reprimir seus desejos sexuais e seus corpos.

Na Idade Média, por exemplo, a igreja acreditava que a mulher era a causa da tentação e do pecado. Elas eram consideradas inferiores aos homens, sem direito à educação ou à voz ativa na sociedade. Qualquer tipo de relação sexual fora do casamento era considerado pecado e poderia levar à expulsão da igreja.

Mesmo no século XX, a igreja continuou a reprimir a sexualidade feminina. O Papa Pio XI, em 1930, publicou a encíclica Casti Connubii, que reafirmava a proibição do uso de contraceptivos e qualquer tipo de controle de natalidade. Isso deixava as mulheres sem escolha sobre quando e como ter filhos, colocando seu corpo como expressão da doutrina religiosa.

A revolução sexual e a libertação feminina

Com o passar dos anos, a sociedade começou a mudar e a mulher passou a ter mais direitos e liberdade. A revolução sexual dos anos 60 e 70 trouxe à tona uma nova visão sobre a sexualidade feminina, colocando a mulher no centro da sua própria sexualidade. A abordagem religiosa à sexualidade feminina evoluiu significativamente ao longo do tempo. Enquanto as religiões antigas tendiam a celebrar a sexualidade feminina como algo sagrado e divino, as religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) adotaram uma abordagem um tanto quanto repressiva.

No entanto, como a sociedade mudou, as religiões também tiveram que se adaptar, especialmente a partir do século XX. Muitas denominações cristãs agora ensinam que a sexualidade é uma parte natural e saudável da vida, desde que seja vivida dentro do contexto do casamento. As igrejas também começaram a reconhecer a importância do consentimento e da segurança na atividade sexual, especialmente em casos de violência doméstica ou de abuso sexual.

No entanto, há ainda muitos desafios a serem superados na abordagem religiosa à sexualidade feminina. Muitas religiões ainda veem a sexualidade feminina como algo vergonhoso e pecaminoso, e algumas ainda ensinam que a responsabilidade pelo controle da sexualidade recai exclusivamente sobre as mulheres.

Ainda assim, muitas mulheres religiosas estão lutando por uma abordagem mais positiva e empoderadora da sexualidade feminina dentro de suas comunidades. Por exemplo, o movimento “Shades of Sisterhood” é um grupo de mulheres muçulmanas que estão tentando mudar a maneira como a sexualidade feminina é vista dentro da comunidade islâmica, promovendo uma abordagem mais positiva e inclusiva.

A Sexualidade Feminina na Perspectiva Científica

A ciência tem desempenhado um papel fundamental na compreensão da sexualidade humana, incluindo a sexualidade feminina. Em um artigo intitulado “The Science of Female Sexuality” (A Ciência da Sexualidade Feminina), publicado na revista Scientific American em 2019, a pesquisadora Marta Meana descreveu como a compreensão da sexualidade feminina evoluiu ao longo do tempo.

Segundo Meana, a sexualidade feminina é muito mais complexa do que se pensava anteriormente, envolvendo não apenas aspectos físicos, mas também emocionais e psicológicos. Ela argumenta que as mulheres precisam de um contexto emocional seguro para experimentar sua sexualidade plenamente e que a falta desse contexto pode levar a problemas de saúde sexual e mental.

No entanto, Meana também destaca que a visão da sexualidade feminina como algo sagrado e positivo é importante para a saúde sexual e emocional das mulheres. Ela argumenta que, ao abraçar a sexualidade feminina como algo natural e saudável, as mulheres podem se sentir mais empoderadas e confiantes em relação à sua sexualidade.

Outra autoridade científica que escreveu sobre a sexualidade feminina é Emily Nagoski, autora do livro “Come As You Are” (Venha Como Você É, em tradução livre), que se tornou um best-seller do New York Times em 2015. Nagoski argumenta que a sexualidade feminina não é algo que possa ser dividido entre “certo” e “errado”, mas sim algo que é único para cada pessoa e que deve ser explorado e celebrado sem culpa ou julgamento.

Ambas as autoridades destacam a importância de uma visão positiva e saudável da sexualidade feminina, uma visão que muitas vezes entra em conflito com as crenças religiosas tradicionais.

A Evolução da Abordagem Religiosa à Sexualidade Feminina

Certamente, a história da sexualidade feminina na religião é complexa e muitas vezes conflitante, mas é importante reconhecer que a forma como a religião aborda esse assunto tem um impacto significativo na vida das mulheres. Enquanto a abordagem religiosa tradicional à sexualidade feminina tem sido repressiva e vergonhosa, a ciência está cada vez mais demonstrando a importância de uma abordagem positiva e saudável da sexualidade feminina.

Com a evolução da sociedade e a mudança das atitudes em relação à sexualidade as religiões também têm a oportunidade de se adaptar e adotar uma abordagem mais inclusiva e positiva em relação à sexualidade feminina.

No entanto, isso não é algo que vai acontecer da noite para o dia. A mudança requer esforço e diálogo aberto entre líderes religiosos e suas comunidades. As mulheres também têm um papel fundamental a desempenhar nesse processo, lutando por uma visão mais positiva e saudável da sexualidade feminina dentro de suas comunidades religiosas.

É importante lembrar que a sexualidade humana é uma parte natural e saudável da vida e deve ser celebrada e explorada sem vergonha ou julgamento. A sexualidade feminina em particular deve ser vista como algo sagrado e positivo, um aspecto importante da identidade feminina que deve ser valorizado e respeitado.

A teologia e a sexualidade feminina: há inclusão?

A inclusão da sexualidade feminina na teologia é um tema complexo e multifacetado. Embora a sexualidade humana em geral seja um assunto tratado em muitas tradições religiosas, a sexualidade feminina em particular muitas vezes é negligenciada, estigmatizada ou vista como um tabu.

No entanto, existem muitos teólogos e líderes religiosos que estão trabalhando para mudar essa percepção e criar uma teologia mais inclusiva que valorize e respeite a sexualidade feminina. Alguns exemplos do exterior incluem:

  1. Rosemary Radford Ruether: Ruether é uma teóloga feminista que defende uma abordagem mais inclusiva da sexualidade na teologia cristã. Em sua obra “Sexism and God-Talk”, ela argumenta que a teologia deve ser informada pela experiência das mulheres e incluir uma visão positiva e saudável da sexualidade feminina.
  2. Amina Wadud: Wadud é uma acadêmica muçulmana que trabalha para trazer uma perspectiva feminista e inclusiva para o estudo do Alcorão e da teologia islâmica. Em sua obra “Inside the Gender Jihad”, ela argumenta que a teologia islâmica deve incluir uma visão mais positiva e respeitosa da sexualidade feminina.
  3. O movimento Wicca: Embora não seja uma tradição religiosa estabelecida, o movimento Wicca tem uma visão muito positiva e inclusiva da sexualidade feminina. Na Wicca, a sexualidade é vista como uma parte sagrada da vida e uma forma de celebrar a conexão entre o corpo, a mente e o espírito;
  4. Margaret Farley: Farley é uma teóloga católica americana conhecida por suas obras sobre ética sexual e questões de gênero. Em seu livro “Just Love: A Framework for Christian Sexual Ethics”, ela argumenta que a sexualidade humana deve ser vista como uma expressão de amor e deve ser avaliada em termos de justiça, cuidado e respeito pelos direitos humanos; contudo, sua obra foi duramente criticada pelo Vaticano.

No Brasil, alguns dos principais trabalhos são das teólogas:

  1. Maria Clara Bingemer: Bingemer é uma teóloga católica brasileira, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autora de vários livros sobre teologia, espiritualidade e cultura. Em seus escritos, ela aborda questões como a relação entre sexualidade e espiritualidade, a teologia feminista e a ética sexual.
  2. Ivone Gebara: Gebara é uma religiosa, filósofa e teóloga católica brasileira que tem uma longa trajetória de estudos sobre feminismo, gênero e teologia. Ela é autora de vários livros, incluindo “Longing for Running Water: Ecofeminism and Liberation” e “Teologia Feminista: Ensaio sobre Paixão e Perspectiva”.


Obviamente, existem diversas pesquisadores e escritoras na área. E esses são apenas alguns exemplos de teólogas que estão trabalhando para incluir a sexualidade feminina na teologia. À medida que a sociedade evolui e as tradições religiosas se adaptam às mudanças culturais, esperamos ver cada vez mais inclusão e respeito pela sexualidade feminina na teologia.

Se você se identificou com esse tema e quer saber mais sobre a história da sexualidade feminina e a religião, continue acompanhando nosso blog para mais artigos e informações relevantes sobre esse e outros temas importantes relacionados à teologia, religião e cultura religiosa.