
No mês de junho, o Brasil se colore de bandeirinhas, acende fogueiras e se embala ao som de sanfonas. “Por trás da estética caipira, das comidas e das danças coreografadas, as festas juninas revelam muito mais do que tradição: elas escancaram um país que preserva uma cultura milenar e o que se transforma com o passar dos anos, num sincretismo entre rural e urbano, entre sagrado e profano”, comenta a pesquisadora Ana Beatriz Dias Pinto, doutora e teologia e referência no campo de culturas religiosas no país.
Uma origem milenar, muito anterior ao Brasil
Antes mesmo da chegada dos colonizadores portugueses, junho já era tempo de festa. Povos antigos da Europa celebravam o solstício de verão com danças, fogueiras e rituais ligados à fertilidade da terra. Com a cristianização do continente, essas festas foram ressignificadas e associadas a figuras religiosas — especialmente a São João Batista, Santo Antônio, São Pedro e São Paulo. A tradição portuguesa, profundamente devota, trouxe consigo essa mistura de paganismo e liturgia, que encontrou solo fértil nas terras tropicais brasileiras – ainda que, diferentemente do hemisfério norte, por aqui seja inverno.
“Com a cristianização da Europa, a Igreja Católica incorporou essas festividades pagãs à vida dos povos, mas associando-as a santos populares, gradativamente. Então por volta do século XVI, os portugueses trouxeram essas festas ao Brasil durante o período colonial, e elas logo se misturaram com elementos indígenas (como as danças circulares) e africanos (como ritmos e instrumentos), criando uma expressão única e sincrética da cultura popular brasileira. E assim, desde o Brasil colonial, as festas juninas logo ganharam força”, explica a especialista. A Igreja Católica, com seu poder pedagógico e comunitário, estimulava as celebrações como formas de integrar o calendário religioso ao cotidiano das pessoas. Em regiões rurais, as festas também serviam como marcos do calendário agrícola, ritmando o tempo da colheita e da gratidão pelo tempo das chuvas.
No centro desse calendário está São João Batista, celebrado em 24 de junho. Primo, profeta e batizador de Jesus Cristo, ele simboliza o nascimento da esperança. Conta a tradição que Isabel, sua mãe, teria acendido uma fogueira para avisar Maria sobre o nascimento do menino. Daí a origem do fogo como símbolo da festa e do nome inicial: antigamente, as festas eram chamadas de “joaninas”, até que se tornaram somente “juninas”. E aqui no Brasil, São João tornou-se o padroeiro das alegrias juninas. A ele se atribuem pedidos de chuva, agradecimentos pela colheita e pela saúde. Sua figura é carismática, popular, simples — um santo do povo.
“Essa devoção múltipla reflete a religiosidade popular brasileira, que cultiva relações afetivas e práticas com esses diversos santos, de épocas distintas, num modo de confraternizar e celebrar principalmente a partir de 24 de junho, que faltam 6 meses para o Natal, ou seja, meio ano para a “chegada do Menino Jesus”, que São João Batista anunciou!”, explica a professora Ana Beatriz.
Mas o São João não reina sozinho. Desde o dia 13, Santo Antônio abre os festejos com sua fama de casamenteiro e de realizador de simpatias. No dia 29, São Pedro e São Paulo encerram o ciclo junino – o primeiro como guardião das chaves do céu, protetor dos pescadores e dos que trabalham com água; o segundo, como símbolo da missão evangelizadora e da firmeza na fé, sendo um dos pilares da tradição apostólica cristã. Esse quarteto de santos reforça o caráter multifacetado da festa: ela é religiosa, sim, mas também prática, afetiva e simbólica.
O Nordeste e a alma do São João
Embora celebrado em todo o país, é no Nordeste que o São João atinge sua máxima potência. Cidades como Caruaru (PE) e Campina Grande (PB) transformaram a festa em patrimônio identitário. Ali, junho é o mês mais esperado do ano, e a preparação dura meses. Grandes estruturas são montadas, artistas locais e nacionais se apresentam, o comércio explode e as ruas se enchem de cores, passos e sotaques.
Não se trata apenas de turismo ou espetáculo. O São João nordestino é expressão de pertencimento, de memória e de resistência. É quando o interior fala mais alto que a capital. É quando o homem do campo, muitas vezes marginalizado nas políticas públicas, é exaltado como personagem principal da festa. E é também o momento em que o forró — nascido das dores e amores do sertão — se reafirma como linguagem legítima de um Brasil profundo.
Entre tradição e modernização: o que está em jogo?
Nos últimos anos, as festas juninas têm passado por transformações significativas. Grandes eventos, impulsionados por verbas públicas e patrocínios privados, começaram a incluir artistas do sertanejo universitário, do arrocha, do pop nacional e até da música eletrônica em suas programações. O debate emergiu: estaríamos perdendo o verdadeiro São João?
Há quem defenda que sim. Para muitos artistas e pesquisadores, a substituição do forró tradicional por estilos comerciais representa uma descaracterização da festa. “É como se, na busca por mais público, abríssemos mão da nossa própria voz”, dizem. A crítica aponta para a lógica do mercado que transforma tudo em produto — inclusive a cultura popular.
Outros, no entanto, veem a mudança como parte de um processo natural de adaptação. “As festas são vivas, dizem, e precisam dialogar com novas gerações. Incorporar novos estilos não significa negar o passado, mas ampliar as possibilidades de encontro. A verdade talvez esteja no meio. A transição não precisa ser exclusão. Pode haver espaço para o novo sem apagar o antigo. O desafio está em garantir que o forró, o xote, a zabumba e a sanfona continuem tendo seu lugar de honra — não como atração nostálgica, mas como centro da celebração”, expõe a teóloga da PUCPR.
O impacto das festas juninas vai além da estética ou da música. Elas movimentam bilhões de reais por ano, especialmente nas regiões Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste. Agricultores familiares aumentam a produção de milho, amendoim, mandioca e batata-doce. Artesãos fabricam bandeirolas, vestidos, adereços. Costureiras, marceneiros, decoradores, artistas plásticos, ambulantes e produtores culturais encontram renda e visibilidade.
Em cidades como Campina Grande, o São João injeta mais de R$ 300 milhões na economia local. Hotéis ficam lotados, restaurantes operam no limite, transportes aumentam sua frota. É um verdadeiro ciclo de prosperidade — temporário, mas poderoso. E, mais do que isso, é um exemplo concreto de como cultura popular pode ser vetor de desenvolvimento.
Simbolismo, fé, festa e curiosidades
O São João também é rito. A fogueira, acesa nas portas das casas, simboliza proteção espiritual e comunhão. As quadrilhas, danças coreografadas em duplas, são encenações simbólicas do casamento, da fartura e da alegria. O balão, embora proibido por risco ambiental, ainda é lembrado como símbolo da elevação do espírito.
Há, ainda, um sentido de religiosidade que perpassa a festa — mesmo entre quem se diz não religioso. O costume de agradecer ao santo, de fazer promessa, de pedir por amor ou cura, revela uma dimensão mística e afetiva da experiência. O São João, nesse sentido, não é apenas uma celebração: é um campo de fé popular, de vínculos invisíveis entre pessoas e símbolos.
Alguns elementos curiosos e tradicionais das Festas Juninas, de acordo com Ana Beatriz, são:
• A fogueira: tradição que teria começado com Isabel, mãe de João Batista, que acendeu uma fogueira para avisar Maria sobre o nascimento do filho. Era a forma de comunicação da época! No Brasil, ela ganhou conotações de agradecimento, promessa e fé. Mais do que um desafio divertido, pular a fogueira carrega um simbolismo ancestral: representa purificação, renascimento, desejo realizado. No Brasil, isso se popularizou ao ponto de virar cantiga: “Pula a fogueira, ioiô”. Esse gesto é arquétipo de purificação, de queimar energias e experiências negativas, reduzindo a cinzas o que não é bom para a vida;
• As quadrilhas: têm origem das danças francesas. Palavras como o balancê, o anavã e o anarriê vieram da “danse de salon” europeia. Ou seja, a quadrilha nada mais é do que uma dança de casais que se abrasileirou nos nossos arraiais. Aos poucos, virou dança coreografada pelo povo;
• Casamento caipira: na quadrilha, é uma sátira do matrimônio rural, mas também simboliza o desejo por união e prosperidade, com presença de personagens fazendo brincadeiras e piadas;
• Simpatias juninas: práticas populares que misturam devoção e confiança, ligadas principalmente a Santo Antônio, por parte de quem pede por prosperidade, matrimônio e alimentos;
• Papel da Festa como rito de passagem: para muitos jovens do interior, participar das festas juninas é um marco da socialização e da vida comunitária, permitindo sair da rotina do meio rural e tendo acesso a outras pessoas, culturas e “conhecer novas realidades do mundo” sem sair do Brasil, tendo em vista que são festas que atraem também muitos turistas estrangeiros;
• pau de sebo: brincadeira difícil de ser concluída e tida como profana, com conotação fálica em cidades de cultura machista que inclusive não permitem a participação de mulheres, mas que representa a consagração e premiação de quem conseguir escalá-lo e tocar um sino ou retirar o prêmio que fica em seu topo;
• brincadeiras para ganhar “prendas”: pescaria, bola ao alvo, argolas… há varios tipos de brincadeiras para crianças e também o restante do público se divertirem ao longo do andamento da festa e, mediante comprar ou ter acesso a fichas de participação, se atingirem os resultados, ganharem uma pequena lembrancinha ou premiação;
• Comidas típicas: No Nordeste brasileiro, as festas de São João coincidem com a colheita do milho. No Sudeste, com a do amendoim. No Paraná, o pinhão. No Rio Grande do Sul, a uva. O resultado? Canjica, pamonha, bolo de milho, curau, pé-de-moleque, pinhão cozido ou assado, quentão e vinho quente. Tudo como forma de Ação de Graças a um plantio bem-sucedido, em forma de gratidão disfarçada de quitute;
• Bebidas típicas: as bebidas juninas, são o vinho quente e o quentão. Elas têm raízes portuguesas e surgiram como função social de aquecer o corpo e a alma. Se usa cravo, gengibre e especiarias para dar aroma e deixar a bebida com gosto dos frutos da terra. Afinal de contas, são bebidas celebrativas do final das colheitas.
Curiosidades e memórias que resistem
Há muitos elementos curiosos que compõem o mosaico das festas juninas. A “comida de milho”, por exemplo, não é apenas culinária típica — é também memória afetiva, conhecimento ancestral e gesto de partilha. O “casamento matuto”, com seus personagens caricatos, guarda uma crítica social e uma homenagem ao amor rural.
Há também a figura do “noivo fugido”, símbolo da rebeldia, e as simpatias com Santo Antônio, que misturam fé e humor. Em algumas comunidades, ainda se mantém a tradição da “busca do mastro do pau de sebo” ou da “noite do espantalho”. São pequenos gestos que, mesmo fora dos holofotes, mantêm viva a alma da festa.
O que o São João nos ensina sobre o Brasil?
Mais do que uma celebração sazonal, o São João é espelho da alma brasileira. Ele nos lembra que o país não cabe apenas nas metrópoles, pois há um Brasil profundo, rural, coletivo e sensível pulsando em cada arraial. Nos ensina que tradição não é sinônimo de atraso, mas de enraizamento. E que a festa é, também, um modo de resistência — contra a homogeneização cultural, contra o apagamento das vozes do interior, contra o esquecimento do que nos faz povo.
“Em tempos de conexões digitais e fé acelerada, as festas juninas permanecem como ritual coletivo, memória afetiva e expressão de uma espiritualidade popular legítima. Elas falam de pertencimento, alegria e esperança — por meio das danças, das brincadeiras e da celebração da colheita dos alimentos típicos do inverno brasileiro. Elas são expressão simbólica do imaginário devocional e cultural brasileiro — com direito a muitas orações, simpatias e à consciência simbólica de que o ano chegou à sua metade, convidando cada um de nós a olhar para trás, agradecer, e reacender a fé para o que ainda está por vir”, frisa a professora Ana Beatriz.
Além disso, o São João revela a capacidade da cultura popular brasileira de ressignificar e preservar tradições, mesmo diante da urbanização, da globalização e das transformações religiosas. A festa mostra como a alegria, a fé, o corpo, o trabalho rural e o afeto comunitário são valores duradouros.
Também denuncia, em sua permanência, a potência da cultura do interior frente ao domínio dos centros urbanos, mostrando que a alma do Brasil pulsa forte também fora das capitais e cidades tidas como “mais importantes” no cenário nacional.