Vias Abertas

Manifesto em defesa de vidas plenas

Manoel Negraes

Há alguns meses, durante uma audiometria de rotina, a profissional de saúde que conduzia o exame lamentou o fato de a minha perda visual não ter cura. Mais uma vez – e já foram tantas – presenciei esse lamento que, de certo modo, reforça a ideia clássica de “tragédia pessoal”, de “fardo” ou, ainda, da impossibilidade de uma vida plena com a minha condição corporal.

No senso comum – e não apenas entre os profissionais de saúde – essa única narrativa possível para uma perda visual é muito forte, naturalizada e raramente questionada. Uma narrativa que acaba, por sua vez, construindo um contexto de desvalorização das múltiplas vivências de pessoas com deficiência que não se encaixam em um padrão corponormativo estabelecido e dominante.

Não me recordo exatamente quando abandonei a espera por uma cura, ou melhor, quando abandonei o desejo de voltar a enxergar bem, mas me lembro de momentos marcantes nos quais a minha baixa visão já não me incomodava. Um processo de afastamento da cura, é importante frizar, que não representou para mim uma “superação” de uma “limitação”, e sim, na verdade, uma afirmação de uma vida plena possível a partir da minha forma de ser e estar no mundo, com ricas experiências e, claro, frustrações.

Neste texto, poderia detalhar o quanto é bacana andar pela cidade e percebê-la com todos os sentidos; poderia detalhar o quanto é e pode ser fascinante interagir e construir relações com outras pessoas sem enxergá-las totalmente – e tenho amigos antigos que até hoje não faço ideia de como são fisicamente; e poderia, também, detalhar as estratégias que desenvolvi e desenvolvo para executar tarefas do cotidiano utilizando o tato, a audição e o olfato. Contudo, o que quero destacar neste breve texto é o quanto é urgente o combate ao capacitismo que nos afeta todos os dias e o quanto estamos distantes da promoção das condições e das oportunidades necessárias para que as pessoas com diversas formas de ser e estar no mundo possam buscar e alcançar uma vida plena, com dignidade.

Infelizmente, as mais variadas experiências das pessoas com deficiência não são valorizadas como preciosas contribuições para a diversidade cultural. Pelo contrário, ainda somos, de modo geral, desvalorizados, inferiorizados, marginalizados, minorizados e desqualificados, empurrados com sutileza ou violência para a desistência de nosso acesso pela fadiga diária e para a não aceitação pessoal de quem somos e do que podemos fazer.

É importante frizar, também, que o objetivo aqui não é fazer qualquer julgamento ou crítica em relação ao desejo pela cura ou por um tratamento, um desejo, na minha opinião, legítimo. O objetivo é apresentar outra perspectiva a partir do meu afastamento da ideia de cura, que para mim significa mais do que uma escolha – não quero voltar a enxergar bem –, significa uma libertação e, mais ainda, uma busca ativa e permanente por ricas experiências que, por um lado, sejam prazerosas e repletas de aprendizado e, por outro lado, contrapontos para lidar com as frustrações intrínsecas à baixa visão, isto é, as frustrações relacionadas ao impedimento corporal, independentemente da eliminação das barreiras físicas e culturais impostas pela sociedade – por exemplo, não poder dirigir sozinho por uma estrada deserta, sem destino definido. Enfim, ricas experiências que sejam um tempero diferente na minha busca pessoal por uma vida plena.