Como diz a canção, o Haiti não é aqui. No entanto, esse ponto no mapa foi algoz para nós, brasileiros, que perdemos a pediatra Zilda Arns, morta pelo terremoto que atingiu Porto Príncipe há uma semana. Sem dúvida, ela foi responsável por atacar de frente um dos sintomas típicos dos países de terceiro mundo, que é a mortalidade infantil.
Outro mérito dessa mulher que mesclava força e ternura foi desenvolver um dos complexos voluntários mais bem-sucedidos do mundo, reunindo 300 mil voluntários que se doam à causa. Sua visão privilegiada foi capaz de utilizar a hierarquia da igreja católica aliada a um projeto social.

Isso porque a Pastoral da Criança é formada por diversas escalas, do coordenador de área a líderes de comunidade, chegando às formiguinhas que vão a campo. Tudo num ordenamento eclesiástico admirável e a serviço – de fato – dos menos necessitados.
Além disso, foi pioneira em praticar ações de responsabilidade social antes mesmo do termo ser utilizado mais no discurso do que na práxis. Ela abriu picadas na mata e arregaçou as mangas para reverter o cenário da desnutrição com sua fórmula nada mágica mas simples da combinação de soro caseiro e multimistura.



Peregrina de Deus
É por todas essas razões que agora só se pode lamentar essa perda irreparável para o Brasil e o mundo. Enquanto Obamas da vida aumentam o investimento no Afeganistão e levam o Nobel da Paz, a nossa Zilda Arns seguia sua caminhada disseminando o poder transformador da Pastoral da Criança, numa verdadeira peregrinação divina, visão herdada pelos pais, que já se dedicavam a causas sociais.

Para quem só acha que a entidade atende crianças, engana-se. Voluntárias de norte a sul do país chegam para atender a criança, mas acabam se deparando com um cenário social que envolve toda família. Além das crianças, hoje a Pastoral possui programas de capacitação profissional para as mães dessas crianças, que passam a aprender uma ocupação no melhor estilo anti Bolsa-Família. Transitando em todas as esferas do poder com seu semblante calmo e sereno, nem por isso Dona Zilda deixava de opinar subre política e jamais se eximia de críticas que considerava importantes para que servissem de reflexão à sociedade.

Além da infância, a inteligência privilegiada de Zilda Arns já previu que a população brasileira, antes forrada por jovens, está envelhecendo. Entregues à própria sorte, os idosos nesse país são considerados cidadãos de segunda classe, marginalizados e desprezados.

De acordo com voluntárias que faziam fila para dar seu adeus à coordenadora da Pastoral da Pessoa Idosa, existem pelo centro da cidade idosos empilhados em prédios, cujos filhos pagam o aluguel, medicamentos e comida e dizem fazer a sua parte.

No entanto, o que essas voluntárias dizem é que são pessoas necessitadas de carinho, afeto, escuta. É justamente esse um dos trabalhos realizados, além de outros relacionados à pessoa idosa.



Dona Zilda e seu exército de formiguinhas
Acompanhando a correria pela notícia fugaz, entrevistei algumas formiguinhas anônimas responsáveis pelo grande fruto deixado por Dona Zilda Arns chamado Pastoral da Criança.

Muito abaladas com a perda dessa verdadeira rocha, as voluntárias se dedicam de corpo e alma. Para quem anda buscando um caminho para o voluntariado, existem diversas áreas de atuação e não existe separação de credo ou religião. Uma das voluntárias, professora de ensino médio de segunda a sexta, ocupa tempo para se dedicar dois a três sábados para apenas ouvir.

Ela participa das reuniões mensais aos sábados e se dedica à escuta de queixas e tenta ajudar da melhor maneira possível. Num desses encontros, alegra-se de contar que conseguiu intermediar o conflito familiar sério que havia entre pai e filho.

Em outra passagem, relembrada pela voluntária nº 1 da fila do velório de Dona Zilda, levou até três anos para que uma mulher abrisse a casa para a Pastoral. Ela só abria uma fresta de vidro, era desnutrida e já tinha quatro filhos na mesma situação. Quando estava grávida do sétimo rebento, concedeu a entrada da voluntária e daí em diante a vida se transformou e mudou para melhor. Livre da desnutrição, a mãe e os sete filhos hoje vivem normalmente e longe da sombra da morte.


Frase
Como os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto das árvores e nas montanhas, longe dos predadores, das ameaças e dos perigos e mais perto de Deus, devemos cuidar de nossos filhos como um bem sagrado, promover o respeito a seus direitos e protegê-los.

Zilda Arns (parágrafo final de seu último discurso à humanidade)