Quatro ouvidos para duas bocas

Roberta D’Albuquerque | robertadalbuquerque@gmail.com

Ele fala pouquíssimo. Desde sempre. Para a pergunta que ela repete todo fim de noite, responde que foi “tudo certo”, caso o dia tenha sido ótimo, e “ah, nada demais”, caso tenha sido sofrível. Já ela descreve os menores detalhes, chega a acrescentar um personagem, um cenário, uma minúcia que possa deixar os eventos de uma quarta-feira mais saborosos, mais intrigantes, ou, quem sabe, mais assombrosos. Elimina falas aborrecidas, principalmente se forem as suas, desenvolve outras tantas. E, à medida em que se desenrola o exercício de incrementar e contar as histórias, uma depois da outra, eles fazem o jantar, comem, bebem o que puderem, a depender de que horário o despertador tocará na quinta, põem as crianças para dormir e dormem.

O quase silêncio dele esconde uma característica rara. Há, no diálogo todo, uma certa coautoria que, a ouvidos pouco treinados, passa desapercebida. É uma escuta que abre espaço de conforto, uma pergunta que evoca a resposta que estava ali, esperando na fila, louca para fazer parte da narrativa, uma expressão no rosto que deixa falar mais, melhor ainda, que convida a falar muito mais, um ganchinho que ele constrói no fim de uma história e na ponta de início da outra, pronto para encaixar. Se eu precisasse definir as poucas horas que separam o fim de expediente e o início do sono, naquela casa, diria que é uma cama bem forrada, de lençóis branquinhos, travesseiro fofo e edredom antigo com cheiro de amaciante.

Noites e noites de conversa macia dela para ele. Noites e noites de ganchinhos encaixados dele para ela. Quase tudo sempre igual.
Quase. Porque há dias em que ele fala. E se fala, ela dá pausa no mundo para acompanhar a escolha de cada palavra. Fica particularmente interessada na entonação, nos gestos, nos mini pulos quase imperceptíveis, coisa de milímetros, que ele usa como exclamação, nos dentes muitos – e grandes, e bonitos – que deixa aparecer quando percebe que surpreendeu, que apresentou um pedacinho de mundo, no suspense que sabe esperar revelação, característica tão valiosa de seu discurso, tão sua. Quinta-feira foi um desses dias. E ele falou e falou até as crianças deitarem. Falou mesmo quando os dois já estavam deitados com as cabeças encostadas uma na outra. E ela dormiu com a sensação de que casara-se com um livro bom. Mais do que isso, casara-se com um clássico. Desses que se guarda depois da leitura na prateleira da sala, desses que se grifa do início ao fim. Desses que sabem o que e como contar da vida. E o que ele disse? Conto na semana que vem, se vocês quiserem. Boa semana queridos.

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