
Minha avó Beatriz, aquelas italianas bravas com estilo profético, dizia que agosto é mês de “cachorro louco”. Nunca entendi direito o motivo desse antigo ditado, mas eu lembro que, quando criança, tinha medo desse mês. Quando me deitava na cama, ficava imaginando que poderia ser atacada por algum cão feroz e enlouquecido na rua. Isso nunca aconteceu, até porque eu sempre contornei toda espécie de cão, inclusive aqueles que rosnam feio e até aqueles que andam sobre duas patas.
Li diversas teorias explicando a origem do ditado, nenhuma me convenceu muito, mas segui a vida. Até porque meu filho caçula, o Augusto, nasceu em agosto – o nome, diga-se de passagem, não é um trocadilho com o mês, foi apenas uma curiosa coincidência mesmo. Aí agosto ganhou nova conotação pra mim, completamente diferente e alegre. E nunca mais me preocupei com os cachorros loucos, até porque eu tinha que dar conta das lindas loucuras do Augusto, sempre intrépido, ousado, inventivo e desafiador.
Agosto de 2023 começou e eu ouvi, internamente, minha avó falando “começou o mês do cachorro louco”. Já no dia 1.º fui parar no hospital. Cheguei chorando porque não conseguia respirar graças a um quadro agudo de pereba, uma mistura de sinusite, dor de garganta e medo da Covid reaparecer por essas bandas. Sobrevivi.
Dias depois, ainda catando o ar que parecia ainda mais rarefeito pra quem vive numa capital localizada a quase mil metros acima do nível do mar, como Curitiba, recebo mensagem de uma das minhas grandes amigas, já com 39 semanas de gestação, de que estava indo às pressas pra maternidade. Dor de cabeça, pressão alta e aquele combo que obstetra nenhum gosta. Não dormi até receber notícias de que ambos, ela e o bebê, estavam bem. Veio um flashback na mente e revivi o parto do meu sobrinho e o piripaque que a minha irmã sofreu, pelos mesmos motivos. Aliás, essa é a principal causa de morte materna no Brasil, só pesquisar (75% dos casos)! Sim, porque sou dessas, sofro junto de quem eu amo. Irmã, amiga, comadre! Sobrevivi e elas também.
Mal me recuperei do susto e recebo a notícia de que meu sogro, que já estava hospitalizado, contraiu Covid – aquela mesma que eu estava com medo no começo do mês. A notícia chegou às vésperas do Dia dos Pais. Estávamos esperando que saísse do hospital pra visitá-lo, justamente pra evitar mais riscos. A sensação de impotência nessas horas é a pior coisa do mundo. Meu marido fez um bate-volta Curitiba-Floripa pra ver o pai e chegar a tempo de passar o Dia dos Pais com os nossos filhos. A cabeça dele estava em Nárnia, os cachorros loucos deviam estar latindo muito por lá. Eu chorando e tentando contornar a situação por aqui. Há dois anos, meu pai quase morreu. Mas ele aguentou firme e agora pude abraçá-lo e até azucrinar um pouco, pra não perder o ritmo. Sobrevivemos.
Com o quadro do meu sogro se agravando a cada hora, seguimos pra Floripa ainda no domingo de Dia dos Pais, parecia uma ironia do destino. Não tínhamos certeza de nada. Apenas de que no meio da semana seria o aniversário do Augusto e tínhamos marcado uma festa. Augusto quis comemorar seus 9 anos com uma roda de samba. Fiquei imaginando o que meu sogro faria nessa situação e tenho certeza de que, se estivesse consciente, iria dizer pra sambar com o Augusto, já que o neto é a réplica dele.
Acionei minha rede de apoio pra que a roda de samba do Augusto acontecesse. Irmã, amigas, vizinhas que se tornaram amigas e irmãs montaram tudo, da decoração ao cavaquinho, e a roda de samba do Augusto aconteceu, com as músicas que ele escolheu e nos fez ouvir em todo o trajeto da viagem. Às vezes eu não sabia se ria ou chorava. Sobrevivi. Quero muito que meu sogro também sobreviva.
Depois de tudo isso, entendi que os cachorros loucos de agosto podem ter vários nomes. São os medos que carregamos pela vida e que podem aparecer em qualquer época do ano e em qualquer idade. E que não controlamos o tempo, ele é uma dádiva que precisamos aproveitar a cada minuto, antes que um latido mais forte nos leve pra algum lugar desconhecido.
Danielle Blaskievicz é jornalista, empresária e descobriu que os cachorros loucos são os medos que a gente carrega pela vida.