Troquei a espumante por água com gás

Depois dos 50, liberdade é rever as eternas amigas numa terça-feira qualquer e rir alto sem medo de pagar a conta

Danielle Blaskievicz
maturidade

Sex And The City nos trópicos, mas com friozinho (Foto: Aniele Nascimento)

Se “Sex and the City” tivesse acontecido abaixo da Linha do Equador, a abertura não seria numa avenida glamourosa com táxi amarelo: seria na beira da praia, pés na areia e um sambinha ao fundo. Também não ostentaria grifes e o cenário contaria com vento carregando guardanapo, copo americano suando e risada que dispensa filtro solar.

Antes era temporada de besteira com maratona de amores e desamores. Agora, a pauta ganhou novas linhas: finitude dos pais entrando sem pedir licença, receitas médicas que moram na porta da geladeira, casamentos que sobreviveram, divórcios que viraram lições de vida e o kit de sobrevivência com antiácido, protetor e a famosa hora de Cinderela. Menos álcool, mais gargalhada. A conta emocional agradece.

Chegamos pontuais, joelhos opinativos e zero preguiça de rir. Em vez de combinar batom, combinamos horário de saída, apesar da vontade de esticar a conversa até não poder mais. Teve um tempo em que o dia seguinte era país estrangeiro, sem dono ou exigência de passaporte. Hoje é reunião às nove, exame de rotina e boletos. A graça não foi embora, só aprendeu a etiqueta da vida madura.

O assunto família entrou na pauta e o cardápio de temas passou por várias configurações: o projeto casal com planilha e agenda compartilhadas, a vida solteira em tempos de apps de relacionamento, com sanidade em dia e, ainda, o kit de vida adulta completo, com namorado, cachorros e enteados, com calendário de fim de semana e combinados claros. No lugar de papinha e boletim escolar, hacks de convivência pra alinhar as expectativas, blindar o próprio tempo, negociar silêncio debaixo do mesmo teto. Rimos do quanto já fomos intensas. Hoje somos práticas e eficientes, sem perder o rebolado.

Casamentos e divórcios desfilaram como figurino repaginado. Tem peça original bem cuidada, tem alta-costura de retalhos novos, tem coleção cápsula felicíssima. DR mudou de significado: agora é dor na rotação. Vida a dois ganhou um terceiro elemento nada poético, porém útil, o plano de saúde. Não tem pagodeira, mas garante anestesista.

A velhice dos pais chegou em voz baixa, com direito a silêncio coletivo pra quem já não faz mais parte dessa dimensão. Exames, consultas, farmácia como ponto de encontro. A gente busca equalizar o medo com ironia e afeto, sem perder a piada. Falamos da mãe que só confia em médico com caneta no bolso e letra indecifrável e do pai que se recusa a aposentar a carteira de habilitação e só aceita remédio combinado com café.

Rimos muito, porque rir sempre foi nosso modo avião do pânico desde a época em que rugas eram coisa no rosto dos outros.

A água com gás lembrava, bem de longe, as espumantes que já estouramos juntas em outros réveillons. Brindamos sem muita pose, mas com alegria grande. Águas passadas movem moinhos e hidratam a pele.
Vieram as novas superstições e utilidades: álcool em gel na bolsa, previsão do tempo antes do salto, coragem no bolso da frente. A ansiedade juvenil virou calma atrevida. Se deu errado, a gente conta e ri. Se deu certo, conta e ri mais alto. O que era suspense virou crônica. O drama, stand-up. O coração, diretoria experiente que delega sem culpa.

Na mesa ao lado, a galera da Gen Z falava de liberdade com voz de manifesto. A nossa é simples e valiosa: rever as amigas da vida numa terça-feira à noite qualquer, dizer não sem precisar dar explicações, aceitar que meia-noite é tarde e que a cama da gente é o melhor lugar do mundo depois das 23h. Cinderela não perdeu o sapato, só trocou por palmilha anatômica e foi feliz, mesmo que o Príncipe Encantado tenha se perdido pelo caminho.

Na hora da foto, quatro rostos, vinte versões de cada. Sem filtro, mas com roteiro. A câmera registrou linhas que contam histórias e olhos que aprenderam a rir por dentro. Ninguém pediu segunda tomada. Ficou a verdade.

Rachamos a conta como quem já montou muito quebra-cabeça financeiro. Beijo na testa, promessa de reencontros frequentes e cada uma pro seu reino. A cidade nos devolveu pra casa com vento de fim de inverno e a certeza de que amizade é remédio sem bula. A dose a gente sabe de cor.

*Danielle Blaskievicz é jornalista, empresária e pratica a arte de trocar receitas médicas e confidências com as amigas.