Leo Cunha gosta da poesia queusa as palavras com um sentido inesperado.

A linguagem de quem está descobrindo as palavras, o mundo

As poesias, de acordo com os especialistas, despertam a sensibilidade e incentivam o conhecimento das crianças. Estão nas músicas, nas parlendas, brincadeiras ou livros, de forma muito leve e às vezes ritmada, e manifestam sentimentos, emoções, saberes.

Elas são consideradas uma maneira muito prazerosa de apresentar algumas situações do cotidiano e ainda de promover a formação literária dos pequenos.

O escritor, tradutor, jornalista e professor universitário mineiro, Leo Cunha, também acredita que a poesia está muito próxima do universo da criança e que é a linguagem de quem está descobrindo as palavras, o mundo.

Leo conta nessa entrevista que praticamente cresceu em uma livraria e que começou bem cedo a escrever. Aos 55 anos já publicou mais de 60 livros de crônicas e poesia para o público infantojuvenil. Muitas de suas obras foram premiadas.

Ele também já traduziu mais de 30 livros de autores como Antonio Skármeta, Julio Cortázar, James Joyce, David McKee e Jerry Spinelli. Entre esses grandes nomes da literatura há ainda o de Gabriela Mistral, de quem Leo Cunha traduziu Balada da Estrela.

 

TD – O que o levou à poesia?

LC – Eu falo sempre que tive muita sorte de crescer praticamente dentro de uma livraria. No final da minha infância, início da adolescência, minha mãe abriu uma livraria de literatura infantil e juvenil em BH chamada Casa de Leitura e Livraria Miguilim. Eu frequentava muito, ia lá primeiro como filho da dona e depois ajudando a vender, organizando a livraria ou indo aos distribuidores. Sempre curti muito esse universo. Então desde aquele tempo eu já lia muita poesia e, inicialmente, o que tinha para criança, como Henriqueta Lisboa, Cecília Meirelles, Vinícius de Moraes, Sidónio Muralha, Mário Quintana. Depois, na medida em que fui crescendo, isso foi se ampliando. Tinha mais autores escrevendo textos poéticos pra criança: Bartolomeu Campos de Queirós, com sua prosa poética, Roseana Murray, que começou a lançar seus livros, José Paulo Paes. Esse meu repertório de poesia voltada para a infância foi se ampliando bastante. Mas fui crescendo e fui lendo também poesia adulta, como as de Drummond, Manuel Bandeira e outros mais.

TD – Em que momento da vida percebeu que, de leitor, passaria a escritor de poesia?

LC – Com nove ou dez anos eu fiz uma oficina de poesia com Ronald Claver, que é um grande escritor de Belo Horizonte, além de professor e poeta. Fiz a oficina e gostei muito, mas não imaginava ainda que iria por esse caminho. Acho que foi mesmo na época da Faculdade de Jornalismo, quando comecei a fazer meus primeiros textos de literatura infantil, e vi desde o início que a prosa poética me interessava muito. E em seguida, os poemas mesmo.

TD – Por que para a infância?

LC – Acho que um pouco por causa dessa minha relação com a livraria da minha mãe e por ter em casa muitos livros de literatura infantil na infância e na adolescência. Então esse universo da literatura infantil sempre foi muito fascinante para mim. Sempre curti muito os livros pela beleza estética, mas também porque acho que a poesia é muito próxima da linguagem da criança. É uma linguagem de quem está descobrindo as palavras, o mundo, olhando com estranhamento para o que para nós, adultos, é obvio e familiar. Então acho que a poesia é muito próxima do universo infantil.

TD – O que difere o processo criativo de quem escreve poesias e de quem usa outras narrativas verbais, sobretudo para a infância?

LC – Algumas diferenças. No caso da poesia eu estou sempre tentando enxugar o texto, diminuir o número de palavras, chegar na essência, tirar aquilo que está sobrando. É um processo muito mais de lapidação. Geralmente começa numa coisa maior, vai diminuindo e eu foco em cada palavra. Já no caso de um texto em prosa, crônica, conto ou uma narrativa mais longa, eu também reescrevo bastante, mas estou sempre pensando em construir uma coisa maior. Não vejo como uma lapidação, como penso a poesia, porque vou acrescentando, acrescentando e criando conexões para ampliar o texto.

TD – O que uma poesia precisa ter para chamar a atenção das crianças?

LC – Gosto da poesia que surpreende, que surpreende por um olhar inusitado, diante daquele fenômeno, objeto, pessoa, pela ação contemplada no poema. E pode ser pelo olhar do poeta ou pelo próprio jogo de palavras. A poesia tem muito a ver com essa brincadeira com as palavras, com o uso da palavra em um sentido inesperado ou uma conexão entre palavras em um sentido imprevisto. Então não é que precisa ter, mas eu gosto quando a poesia surpreende e quando ela lida de maneira criativa com a linguagem.

TD – A narrativa visual nos livros de poesia é tão importante quanto nas outras narrativas verbais?

LC – Ah, eu acho que sim. O livro é todo um conjunto, né? Ele é texto, é imagem, o diálogo do texto com a imagem, o design do livro, o formato, se é vertical ou horizontal, o tipo de letra, o estilo do desenho. Cada um desses detalhes é fundamental e faz parte da narrativa visual. Até o tipo de letra faz parte da narrativa visual. Tudo isso deve ser pensado em conjunto, não exatamente no mesmo tempo, mas tudo deve dialogar. É preciso evitar que a imagem repita o texto, ou o texto repita a imagem. É melhor que um amplie o outro, que dialoguem no sentido de criar novas possibilidades de leitura.

TD – Quantos livros de poesia já escreveu para as crianças?

LC – Não sei o número exato, mas mais de 20 com certeza. E se juntar as prosas poéticas talvez passem de 30. Eu digo prosa poética porque tenho alguns textos como O Sabiá e a GirafaEm Boca Fechada Não Entra EstrelaUm Dia, Um RioArca de Noé, Uma História de Amor, que são livros muito poéticos, mas eu considero prosa poética. E eu também traduzi alguns livros de poesia, que é uma coisa difícil, mas muito rica. A gente aprende muito fazendo tradução, especialmente de poesia. Eu traduzi um de poemas do Jorge Luján, chamado Pantufas de Cachorrinho, da Editora Autêntica, e também traduzi o Balada da Estrela e Outros Poemas, da Gabriela Mistral, para a Olho de Vidro. Duas experiências muito interessantes de tradução de poesia.

TD – Gosta especialmente de algum de seus livros?

LC – É difícil escolher porque são bem diferentes. Um Dia, Um Rio é muito marcante para mim, se considerar como um longo poema ou como uma prosa poética. Ele está nesse limiar que é difícil de ser definido, mas independentemente da classificação foi muito marcante pra mim. Não só o tema que provocou o livro, que foi a grande tragédia de Mariana, mas o processo criativo: a criação do texto, o diálogo com o ilustrador André Neves e com a editora Márcia Leite. Nós conseguimos criar uma obra coletiva e tenho muito carinho por ele. Gosto muito também do Só de Brincadeira, que é um livro de poemas sobre brinquedos e brincadeiras, e me parece que o resultado é muito bonito. Mas não tem nenhum dos meus livros de poesia que eu deixe de gostar. Cada um deles tem a sua graça. Alguns são mais divertidos, como Piolho na Rapunzel e outros Bichos em Versos, que são poemas muito brincalhões. Tem uns de poesia visual, que é uma linha que também me fascina como leitor e como escritor. Tem ainda o XXII!! – 22 Brincadeiras de Linhas e Letras e o Vendo Poesia, ambos de poesia visual, que eu acho muito bacanas.

TD – Muitos de seus livros foram premiados. Quais os prêmios que já recebeu?

LC – Curiosamente a maioria dos meus prêmios são para livros de poesia ou de prosa poética. Meus textos de humor, que são muitos também, receberam poucos prêmios. Não é comum o humor ser premiado e isso não só na minha obra, mas na literatura em geral, no cinema, no teatro. O humor é visto como algo mais simples talvez, menos complexo. Eu discordo totalmente porque fazer um texto bem humorado é super difícil. Inclusive, meu doutorado foi uma pesquisa sobre o humor. Eu sou alucinado pelo humor, pela comicidade, pelos personagens cômicos, pelas formas do riso. Estou fugindo da pergunta (rsrsrs), mas o fato é que quase todos os meus prêmios foram para textos sérios ou poéticos. Haicais para Filhos e Pais, foi vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional; Um Dia, Um Rio foi vencedor do Prêmio da Fundação do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ); Clave de Lua, o mesmo prêmio. Alguns foram premiados pela Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio: o Só de BrincadeiraO Corte e a ChamaUm Dia, Um rio. Curiosamente a Cátedra Unesco premiou um livro meu de humor que é o Culpado ou Inocente? O Julgamento do Lobo Mau, que fiz com a Marta Lagarta. Mas é uma exceção, que confirma a regra.

TD – O que os prêmios significam para você?

LC – Olha… existem vários tipos de prêmio. Naqueles que a gente inscreve com pseudônimo e ninguém sabe quem é o autor, o que está sendo julgado é única e exclusivamente o texto. Eles ajudam muito a dar uma segurança para o autor de que o texto tem qualidade e não é porque é um autor já conhecido, ou de tal editora, ou porque é parente de alguém. Então é só o texto. Felizmente eu recebi três prêmios desse tipo, com pseudônimo: foi com Pela Estrada Afora, que recebeu o prêmio do Concurso Nacional de Histórias Infantis do Paraná; As Pilhas Fracas do Tempo, que ganhou o João de Barro; e o Sonho Passado a Limpo, que ganhou o Prêmio Nestlé. No caso de Um Sonho Passado a Limpo, que é um dos meus textos de prosa poética mais complexos, eu acabei me cansando do livro, achei que ele era muito cheio de firula, e reescrevi de uma forma um pouco mais solta, mais leve. A segunda versão do texto se chama Uma Aventura no Sonho e está publicada pela editora Edelbra. Esses prêmios pra mim são muito importantes. Mas é claro que um Prêmio Jabuti ou da FNLIJ, da Cátedra Unesco, ou uma seleção para a lista dos melhores do ano da Revista Crescer ou da Revista Emília, também são muito bacanas porque estão premiando a obra já pronta, o livro: o projeto, a ilustração, o texto, o diálogo de tudo isso. O prêmio é para o conjunto.

TD – Você também trabalha com a tradução de livros. São sempre infantis?

LC – Já traduzi dois livros adultos, mas gosto mais de traduzir o infantojuvenil que é no que trabalho com mais fluência. Acho que a questão da linguagem, do tom… eu acerto mais no infantojuvenil. Posso traduzir alguma coisa adulta, só que quase sempre me oferecem a tradução dos infantis, o que acho bom porque são mais curtos. A tradução de um livro de 300 ou 400 páginas é extremamente trabalhosa. Prefiro deixar para minha irmã, que também faz tradução e desses livros de 300, 400, 500 páginas.

TD – O que uma boa tradução requer?

LC – No caso da poesia é bem mais complexo. A tradução tem que levar em conta vários aspectos ao mesmo tempo. O sentido literal, claro, mas também os sentidos figurados, o que está nas entrelinhas e a questão da métrica (se o poema tiver essa questão da métrica), as rimas (se tiver), e um astral mesmo do poema – se é uma coisa mais lírica, mais debochada ou reflexiva. Tudo isso um tradutor tem que levar em conta quando está traduzindo um texto, especialmente se for poesia. É o maior desafio para um tradutor traduzir um texto poético. Eu fiquei muito feliz com o trabalho no livro da Gabriela Mistral, que reúne 19 poemas, mas que foram dois anos de trabalho para traduzir.

TD – Quanto é necessário ser fiel à ideia do autor, considerando que algumas vezes a palavra não tem exatamente o mesmo significado e não tem o mesmo sentimento relacionado a ela?

LC – Pois é, foi isso que eu falei acima. A gente tem que levar em conta o sentido literal, mas às vezes a gente precisa encontrar uma saída para isso, porque a tradução literal engana, pode até trair a ideia que o texto original tinha. Então tento pensar assim: se o autor estivesse escrevendo em português que termo usaria? Que palavra ou construção ou ritmo usaria? Acho que isso tudo é mais importante do que a fidelidade à palavra propriamente, né? Uma tradução fiel nesse sentido.

TD – Uma boa tradução depende de identificação do tradutor com a obra a ser traduzida?

LC – Não necessariamente. Claro que quanto mais a gente gosta, mais mergulha, mais estuda, se dedica mais profundamente e tal… Mas acho que é possível fazer uma ótima tradução sem se identificar com o assunto ou com o astral do que você está traduzindo.

TD – O que você sente quando lê um livro de tradução ruim?

LC – Às vezes só se consegue perceber que a tradução é ruim se comparar com o original. Agora… muitas vezes você bate o olho e vê que aquilo foi traduzido de maneira inadequada por causa de uma construção que fica truncada, um ritmo que fica estranho, ou o uso de uma palavra num contexto que não caberia. Me incomoda quando acontece isso. Por isso releio milhões de vezes e mostro pra todo mundo minhas traduções antes da publicação. Porque eu corro esse risco também. Todo tradutor corre, né? Mas é tentar cercar e policiar para não passar esse tipo de engano. Eu acho que o tradutor tem que ter um domínio muito bom não só da língua que está traduzindo, mas também da língua portuguesa.

TD – Você teve contato desde pequeno com a literatura. Sua mãe, Maria Antonieta Cunha, é uma referência em crítica literária. Professora, escritora, tradutora e integrante da Academia Mineira de Letras. Que influência ela teve na sua vida de leitor, escritor e tradutor?

LC – Influência bem grande. Lá no início citei o fato de ter muitos livros em casa, dela ser uma dona de livraria, ser professora. Tudo isso, claro, me colocou num ambiente muito favorável à leitura e à literatura. Eu tenho esse privilégio, tive essa sorte. Muitas portas abriram para mim mais cedo do que para outras pessoas. Ou se abriram mais do que para outras pessoas. Eu tenho total consciência de que eu tive esse privilégio e tento fazer jus a isso. Então… ela me influenciou muito como leitor, não só porque ela lia muito pra mim antes que eu aprendesse a ler, mas também porque me proporcionou um acervo muito grande de livros para eu ler em casa e na livraria. Como escritor e como tradutor a influência não é tão grande. Eu mostro a ela muita coisa que escrevo, peço opinião porque ela é uma ótima editora, inclusive, e porque é uma grande leitora. Mas não há influência em meu estilo, de maneira nenhuma.

 

*Para conhecer melhor o Leo Cunha e o seu trabalho, acesse o site:

https://www.escritorleocunha.com/

 

*Fonte de pesquisa para temas e entrevistas: Instituto Fatum.