*João Ibaixe Jr.
O atual ministro da Saúde afirmou que o aborto é crime no Brasil e minimizou as críticas feitas contra o novo guia de assistência sobre o tema lançado por sua pasta há cerca de 15 dias.
O erro de se afirmar com tanta ênfase a criminalidade da situação, colocando em evidência sua perspectiva pecaminoso-religiosa e carregando o debate de ideologia, faz com que sobre o tema não haja uma análise ponderada e necessária à realidade tanto médica quanto penal.
Em primeiro lugar, é preciso delimitar o tipo de aborto que é previsto como crime no direito brasileiro. Como se verá abaixo, dentre as espécies possíveis de aborto, sob a perspectiva penal, apenas um é considerado crime.
Para se compreender isto, deve-se ter em mente que há um conjunto de elementos que compõem um crime, qualquer crime. Sem um destes elementos, a conduta não pode configurar delito. Quais são tais elementos? São tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.
O crime precisa ser típico, isto é, enquadrar-se na descrição da lei; precisa ser antijurídico, ou seja, a conduta não pode estar amparada na lei; e, por fim, deve ser culpável, vale dizer, ser reprovável da perspectiva do agente.
‘Quando a lei fala em excludente de ilicitude, ela quer exatamente dizer que dada conduta não pode ser crime porque falta o elemento da antijuridicidade, quer dizer, a lei em certo caso permite a prática da conduta e ela não pode ser considerada criminosa.
Exemplo clássico: matar alguém por legítima defesa. A morte ocorreu, há agente praticante da conduta, mas há uma “permissão” legal para esta situação, que é a defesa do próprio agente ou de terceiros. Assim, mesmo tendo ocorrido a morte, a conduta não se tipifica como homicídio e, portanto, não é homicídio.
Com relação ao aborto, sob aspecto legal, existem quatro modalidades: natural; necessário; sentimental e ilícito propriamente dito.
O natural é aquele que ocorre por circunstâncias biofisiológicas involuntárias à gestante, que, na maior parte dos casos, pretendia a continuidade da gravidez. Este caso por óbvio não tipifica crime.
Necessário é o aborto assim chamado quando praticado se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, a não ser com o sacrifício do feto. A interrupção da gravidez é realizada visando-se preservar a saúde da gestante, o que hoje implica em condições físicas e psicológicas. Um exemplo disto, dado por interpretação mais ampla da lei na ADPF 54, é o caso do chamado aborto do anencéfalo, cuja justificativa pode ser fundada em tal circunstância. Deste modo, o aborto necessário, denominado ainda terapêutico ou curativo, não configura crime por expressa previsão legal.
O aborto sentimental é aquele que pode ocorrer quando a gravidez tiver origem num ato de violência contra a mulher, vítima neste caso de crime contra sua dignidade sexual, configurado basicamente pelo estupro. A lei penal em consideração a integridade psicológica da mulher permite o aborto, dizendo que ele não é punível. Verifica-se ainda a ausência de antijuridicidade e o fato não é considerado criminoso. É possível também se considerar a justificativa quanto ao dolo, pois a motivação não é a interrupção isolada da gravidez, porém antes, a preservação da estrutura sentimental da gestante, a qual não pode ser submetida, como regra, a um profundo esforço de manutenção de uma vida cuja origem é espúria e indesejável. O aborto sentimental recebe a denominação de humanitário, moral ou ético, em face de tentar diminuir os reflexos negativos da violência à recuperação da mulher. E não constitui crime.
O único tipo ilícito de aborto é aquele provocado pela gestante ou por terceiro, seja médico ou não, com ou sem consentimento, motivado por outra circunstância que não as acima tratadas. Criminoso é o aborto provocado sem finalidade terapêutica ou sentimental, sem visar proteção da vida física ou moral da gestante. Ele é gerado pela insegurança, pelo medo, pela irresponsabilidade, pela falta de informação e pela falta de apoio individual e social. Enfim, sua causa não é natural, terapêutica ou humanitária, mas de natureza socioeconômica.
A gestante, nesta situação, encontra-se isolada, sem amparo, sem perspectivas, sem horizontes, abandonada mesmo pelo companheiro que, em momentos anteriores, sob a proteção da intimidade, prometia-lhe a luz das mais distantes estrelas.
Neste caso, o aborto é praticado justamente por faltarem condições de atendimento à gestante e de amparo social a uma possível futura mãe.
Falta o que todos os governos falsamente dizem que pretendem suprir: atendimento médico e assistência social. Falta o respeito à cidadã, que, na condição de gestante, não tem suporte assistencial algum dos entes públicos, para poder decidir o que fazer de seu futuro, com uma nova vida em seu ventre.
Ausente está uma estrutura de formação que aponte horizontes para a mulher que foi abandonada em sua situação de gravidez. Falta amparo social para demonstrar que existem outros recursos e que o amanhã não será obscuro.
Falta vergonha do governo e da sociedade para estender a mão a quem efetivamente precisa de apoio, duas vidas em jogo num só corpo.
Cercada de todas as condições, a mulher teria efetiva liberdade para tomar decisões ponderadas. Aí haveria a possibilidade do exercício de uma escolha. Então essa mulher seria livre.
Mas a realidade é a do desamparo da qual já se sabe. O que esta realidade implica é, diante de sua implacável força, verificar se ela não configuraria em termos penais uma causa supralegal de excludente de ilicitude.
Seria uma causa de exclusão de ilicitude fundada numa questão social provocada pela desigualdade. A gestante cuja ausência de condições socioeconômicas a premissem ao desespero, teria assim um suporte legal caso viesse a praticar o aborto. É bastante polêmico, deve-se reconhecer, mas permitiria uma justiça mais equilibrada e teria, certamente, também um pano de fundo humanitário. Mas isso exigiria que principalmente um Ministro da Saúde tivesse uma visão mais humanista e menos totalitária.
*O autor é advogado criminalista e ex-delegado de polícia.
DIREITO E POLITICA
A régua da boçalidade
* Carlos Augusto Vieira da Costa
Para variar um pouco do assunto “eleições”, vale comentar um episódio que marcou o início dessa primeira semana de julho: a demissão pelo SBT do humorista Leo Lins em razão de uma piada sobre uma criança portadora de hidrocefalia em um programa da rede. Na verdade, o mais curioso foi a manifestação de outro humorista, que responde pela alcunha de Monark, também despedido tempos atrás, lamentando o episódio, mas não pela piada, e sim pela demissão, sob o argumento de que a liberdade de expressão estaria sendo violada.
E de fato, do ponto de vista estritamente objetivo, talvez a situação represente cerceamento da liberdade de expressão. Contudo, é importante lembrar que a vida não é feita apenas de “objetividades”, mas sobretudo de “subjetividades”, uma vez que o “Homem”, ou o “Sujeito”, desde a Grécia antiga, sempre representou o centro e a medida de todas as coisas.
Aliás, não é por outra razão que, diferentemente dos outros animais, nos constituímos em seres morais, vivendo em sociedade com base em regras de caráter ético que independem da lei, mas são tão ou mais fundamentais para viabilizar o convívio social. Exemplo: se uma pessoa idosa tropeça à nossa frente, normalmente nos adiantamos para tentar ajudar, ao invés de ficarmos debochando da situação, por mais engraçada que possa ter sido. Da mesma forma, quando, em um restaurante, vamos nos servir no “buffet”, ao sentir uma necessidade urgente de espirrar, viramos o rosto para trás, de modo a nos afastar da comida, e não o inverso.
De todo modo, se é possível admitir que, em nome de uma visão personalista, zombar que uma criança doente esteja garantido pelo direito à livre manifestação do pensamento, então, na mesma linha, não se pode negar que a dispensa desse “engraçadinho” pelo seu patrão também esteja no direito do empregador de escolher seus colaboradores de acordo com seus valores morais, sem maiores considerações.
Por tudo isso, a precipitação desse aparente conflito entre direitos e valores talvez possa ser explicado pelo conceito de boçalidade: boçal é aquele sujeito que não aceita ser avaliado pela mesma régua que utiliza para medir os outros.
*O autor é Procurador do Município de Curitiba.
DOUTRINA
“Outro assunto a ser revisto diz respeito à eleição de “chapas”. É constrangedor que os advogados escolham uma lista pronta, sem selecionar os melhores nomes entre os integrantes das chapas. A regra é intolerável e bem revela esta intenção: alocar integralmente os membros de uma chapa e não dar assento à oposição. É a governança monocórdia. Toca à OAB a imediata alteração da repugnante norma. Na toada, crie-se regra que garanta “cota” à oposição, conforme desempenho nas urnas. Conselhos plurais e abertos às ideias, opiniões, pontos de contrapontos, certamente, melhorarão os órgãos que compõem a OAB. O fim das “chapas fechadas” é inadiável”.
Trecho do artigo “A nossa OAB e a (sua) democracia” de autoria do advogado Hélio Gomes Coelho Júnior, publicado na revista BONIJURIS de ABRIL/MAIO/2022, página 143.
PAINEL JURIDICO
Inovação e gestão jurídica
As Comissões de Direito Digital e Proteção de Dados da OAB-Pr lançaram na última segunda-feira (20/6) duas novas publicações com artigos e reflexões sobre direto, inovação e gestão jurídica. Ao todo, mais de 70 advogadas e advogados participaram na realização dos projetos. Os e-books estão disponíveis na Biblioteca Digital da OAB Paraná. Confira: DIREITO E INOVAÇÃO – VOLUME 7 – MANUAL DE GESTÃO JURÍDICA
Direito previdenciário
O Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário promove nos dias 1,2 e 3 de setembro o XVI Congresso Brasileiro de Direito Previdenciário. O evento será realizado em Foz do Iguaçu. Mais informações: www.ibdp.org.br
Encontro anual
A Associação dos Advogados de São Paulo – AASP, divulga a programação completa do 13º Encontro Anual AASP que será realizado entre os dias 25 e 27/08, na cidade de Campos do Jordão. Informações e inscrições: https://encontroanual.aasp.org.br/index.php/palestrantes/
Ranking internacional
A atuação da Andersen Ballão Advocacia (ABA) foi reconhecida novamente, no recém-divulgado ranking jurídico internacional “Chambers and Partners”. Este é o segundo ano consecutivo em que o escritório se destaca. Depois de constar em outros diretórios nacionais, o escritório agora é apontado como um dos mais respeitados do Brasil na categoria “General Business Law – Paraná”, pelo foco na atuação global em apoio a demandas comerciais e corporativas.
DIREITO SUMULAR
Súmula n. 52 do TSE – Em registro de candidatura, não cabe examinar o acerto ou desacerto da decisão que examinou, em processo específico, a filiação partidária do eleitor.
LIVRO DA SEMANA
O legislador infraconstitucional, ao editar a Emenda Constitucional 45 de 2004, conhecida como “Emenda do Judiciário e do Ministério Público”, inseriu no ordenamento jurídico pátrio o instituto da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário, norma constitucional de eficácia limitada, regulamentada posteriormente pela Lei 11.418/2006. Não se definiu, porém, de forma direta e clara, a repercussão geral. Apenas consignou que seriam “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”. Restou então ao próprio STF a interpretação do que seria questão relevante nos termos da Lei. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal editou a Emenda Regimental 21, de 30 de abril de 2007, alterando o seu Regimento Interno e dispondo sobre o novo instituto. É sobre as incursões e os efeitos jurídicos das citadas normas legais que se debruça a presente obra.