Notícias recentes mostram uma crise que acontece em alguns países em função do envelhecimento das populações: a falta de cuidadores para idosos, doentes e pessoas solitárias, nas famílias em que todos os demais trabalham em outras funções.
Normalmente alguma mulher necessita deixar seu trabalho externo para assumir estas atribuições, pois a identidade feminina costuma ser definida principalmente pela habilidade de criar e manter vínculos afetivos, assim como pela disponibilidade de cuidar dos demais, mesmo que estas atividades, importantes para toda a comunidade, não costumem ser remuneradas.
Hoje cuidadores constituem uma profissão em expansão, mas ainda não conseguem atender a demanda, os salários não atingem um patamar considerado atrativo, por isso familiares consideram que mulheres seriam as candidatas ideais para estas atividades.
É voz corrente que uma mulher desenvolve, no processo de constituição da sua subjetividade, o senso de que suas ações precisam estar constantemente conectadas com as necessidades daqueles ao seu redor. Seus vínculos não são apenas estabelecidos com marido e filhos, costumam existir em ações sociais, animais, crianças em situações vulneráveis, e, portanto, se existem familiares necessitados de atenção em tempo integral elas parecem a opção natural.
Muitas delas tem o poder de ignorar suas aspirações pessoais em favor dos demais, comportamento que socialmente não se espera de homens – embora alguns tenham se destacado em situações admiráveis – já que o masculino é definido normalmente pelo desapego e o feminino pela vinculação, pois o sexo feminino costuma preservar seus vínculos afetivos, mesmo que renunciando à vida pessoal.
Assim como a identidade do homem se vê ameaçada pela intimidade, a da mulher é ameaçada pela separação e destruição dos vínculos. Por isso, o sacrifício das relações interpessoais, a habilidade em cuidar e a crença total de que mulheres são biologicamente destinadas a serem mães, faz da devoção característica associada à feminilidade dita “normal”.
Muitas vezes, e hoje assistimos cada vez mais o retorno deste tipo de crença, só a maternidade traz a ela o respeito social, e sua educação poderia voltar a se dedicar apenas às prendas domésticas.
Certas correntes políticas advogam que dela se espera atualmente apenas os cuidados com a intimidade familiar, criação dos filhos e submissão aos valores masculinos, como muitas influencers propagam aos quatro ventos na internet, louvando a manutenção da condição de “mulher troféu”, esquecendo provavelmente que elas terão, a qualquer dificuldade que se apresente, ou no desapego de seus financiadores eventualmente interessados em alguém mais jovem, que renunciar à vida de amenidades para suprir alguma atividade para a qual não se prepararam ao longo dos anos.
É tradicional que o espaço feminino suporte a esfera pública da produção, do trabalho e da política que são espaço masculino por excelência, e a separação da vida doméstica e não-doméstica condena, em muitos casos, mulheres à não profissionalização.
Valorizar apenas o trabalho exercido fora do lar e desvalorizar aquele desenvolvido dentro dos lares, como preparação da comida, decisões sobre problemas domésticos, criação dos filhos/as, cuidados com aqueles desvalidos, relega a mulher ao papel exclusivamente de vítima do controle masculino, sem vida cultural plena e participação ativa no desenvolvimento de seu país.
É necessário repensar estes preconceitos, num momento em que a profissão de cuidadores precisará ser exercida por homens e mulheres indistintamente, pois o mundo do trabalho se altera em função do envelhecimento populacional, para não transformar a vitória da longevidade num desastre social.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.