Logo após a “abolição” da Escravatura, Rui Barbosa, então ministro da Justiça, mandou destruir praticamente toda a documentação relativa à escravidão. O motivo real foi tentar evitar que os libertos tivessem documentos que instruíssem pedidos de indenizações. Era um escândalo o número de escravizados nesse tempo, após a proibição do tráfico e as leis do “Ventre Livre” e dos “Sexagenários” a quantidade de pessoas nessa condição deveria ser muito menor, embora ainda injusta; à crueldade somava-se a ilegalidade, o que nunca foi nada novo em nossos tristes trópicos.
O pretexto apresentado foi risível, não fora trágica a situação toda, era preciso apagar do país a nódoa e a vergonha da escravidão. A nódoa ainda existe, e a vergonha só aumenta.
Muitos descendentes de escravos tentam se informar sobre seus antepassados, sua origem, nome verdadeiro, quando foram trazidos, alguns poucos conseguem e ostentam com orgulho o nome dos ancestrais em substituição ao sobrenome que lhes foi imposto pelos senhores como marca de propriedade.
Muitos de nós tentamos nos eximir desta culpa com o argumento, até legítimo, de que nunca possuímos escravos e nem descendemos de quem os possuiu. Milhões de brasileiros descendem de imigrantes chegados no final do século dezenove e início do vinte, quando a escravidão já havia sido “abolida”. Mas chegaram a um país construído com o sangue, suor e lágrimas de escravos; encontraram mesa posta, quem pôs? cama arrumada, quem arrumou? casa limpa, quem limpou? Embora esses imigrantes não tenham sido recebidos exatamente com faixas de boas-vindas, tiveram oportunidades infinitamente maiores do que aqueles raptados, trazidos em porões infectos e vendidos como gado; afinal eram “brancos”.
“Alemão batata”, “carcamano ladrão”, “polaco burro”, e até “japonês de cara chata, come queijo com barata”. Delicadezas com que os alienígenas eram referidos, mas que não tinham comparação como o tratamento dispensado aos alienígenas forçados que sequer tinham identidade que remetesse à nacionalidade, eram todos “negros”, menos alusão à cor da pele e mais à condição subalterna e humilhante.
A África não é um país, nem uma imensa floresta com animais selvagens, ou a terra do Tarzan. É um enorme e diverso continente, com centenas de povos, culturas, religiões, e nações, algumas delas com fronteiras artificiais e inviáveis criadas pela estupidez do colonialismo. Dizer que alguém de origem africana é “africano” é verdade, mas verdade tão incompleta quanto afirmar que alguém é “europeu” sem especificar de que parte da Europa. Certo, nenhum homem é uma ilha, e existe o ideal de um mundo totalmente sem fronteiras; ainda não vivemos nesse mundo, temos fronteiras emocionais profundas e necessitamos de identidades de origem.
O século dezenove viveu a valorização do “patriotismo”, não aquele incensado em tertúlias golpistas ou “o último refúgio dos canalhas” que o usam para justificar seus interesses pessoais, até em prejuízo da pátria que dizem amar. O sentido de patriotismo era a busca de uma pátria em uma Europa recortada em principados, baronatos, simulacros de países, divididos em um mundo que exigia a centralização por motivos econômicos e administrativos. A Itália como a conhecemos passou a existir apenas em 1870, aproximadamente quando a Alemanha foi unificada.
Em época similar, o “nacionalismo” foi considerado algo negativo, principalmente por leitores de Karl Marx que passaram a sonhar com um paraíso socialista que abarcasse o mundo todo; após a Revolução russa isso tornou-se artigo de fé, até Lenin morrer e Stalin tomar o poder com sua visão pragmática de “socialismo num só país”. Cacoetes culturais têm vida longa, vivem muito mais do que as eventuais razões que os originaram, nacionalismo até hoje é quase um palavrão.
Independentemente disso tudo, pátria e nação fazem parte de nosso inconsciente coletivo, precisamos saber de onde viemos e onde estamos para definir quem somos, e isso foi negado aos escravizados e indígenas, até como forma de fragilizá-los. Um povo sem identidade é dominado mais facilmente, e quem aufere vantagens com um crime, ainda que não o tenha cometido pessoalmente é, no mínimo, cúmplice.
Quando entregaremos a educação de qualidade que o país deve a esta expressiva parte da população?
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.