Um personagem de Dostoiévski, Ivan Karamazov, afirma que “se Deus não existe, tudo é permitido”; frase até hoje discutida em debates filosóficos e apresentada com o significado da importância da crença em divindade ou na autoridade para contenção de atos antissociais ou pecaminosos.

A história da humanidade é repleta de violências, tiranias e outros crimes, e talvez apenas o respeito a princípios – éticos, religiosos, ideológicos – e também o medo de punições como o fogo do inferno, a guilhotina, a prisão, as multas, tenha exercido algum pequeno controle sobre esses males.

Atualmente, parecemos ter “perdido o medo”, as religiões convertem-se em balcões de negócios onde se espera apenas obter vantagens materiais e curas impossíveis, a política e os políticos perdem o respeito de todos à medida que não se respeitam, a ideologia transforma-se em lista de boas intenções que não se cumprirão, e muitos perdem qualquer restrição aos maus pensamentos e ações.

O pobre ser humano, assolado por um universo que nunca controlará e tendo perdido os “amortecedores” emocionais de gerações passadas, passa a crer que dominará seus medos com gritos e agressões. Maridos e namorados “abandonados” por suas supostas amadas cometem feminicídio, adolescentes invejosas do sucesso de amigas mandam doces envenenados, pais pretendendo compensar seus próprios fracassos através dos filhos terminam por destruir a sua autoestima estabelecendo metas acima do que podem atingir, “chefes” inseguros de sua posição e temerosos de concorrência de subordinados competentes tornam-se déspotas não esclarecidos, mandatários eleitos para dirigir o país afundam em corrupção e perdem o sentido de sua função.  

Nas mídias, redes sociais, escolas, vizinhanças, noticiários, é muito visível hoje em dia a ausência de limites não apenas das pessoas, mas também de países. A agressividade, o desejo pessoal acima de qualquer regra, a facilidade com que qualquer atrito: no trânsito, nos supermercados, nas festas ou em muitas outras situações, tem sido fácil assistir – ou até participar – de grandes desentendimentos e algumas vezes ocorrências letais.

Aparentemente isso se deve mais ao excesso que de falta de opções de comportamentos, dado que conhecemos mais, temos mais acesso às informações, somos mais letrados que gerações anteriores.

Fica difícil entender o motivo de termos tanta dificuldade com limites, que se tornaram a problemática atual. De pais desorientados em relação à educação de seus filhos, professores com crescente número de queixas em relação a crianças incapazes de obediência a regras, intolerantes, intransigentes, muitas vezes racistas, homofóbicas e xenófobas, até notícias de dirigentes e políticos que estão transgredindo preceitos fundamentais de relacionamentos com parceiros econômicos pela desmesurada ferocidade e ganância.

Viver em sociedade necessita restrições, limites, normas e fronteiras, essenciais para a vida comunitária, o bem-estar e desenvolvimento social; limites normativos fazem parte do processo educativo, do avanço civilizacional, pois precisamos conviver.

No entanto a existência de crianças e jovens carentes de limites na contemporaneidade tem sido igualada pela desmedida dos próprios adultos, mesmo quando esses exercem cargos públicos. Notícias de todo o planeta falam de presidentes, governadores, prefeitos e ocupantes de muitas outras funções, com absoluta falta de discernimento no trato com os demais, incapazes de conter-se quando contrariados. A questão dos limites passou a ser uma das questões centrais da nossa era; o crescimento do individualismo, o aumento da violência, estão entre as patologias sociais mais observáveis.

Fala-se muito em retrocesso, o caminho em direção a uma maior compreensão do outro parece prejudicado pelo ódio aos imigrantes, que culpamos por todas as mazelas de nossa vida pessoal ou grupal, ódio aos que não tem a cor da pele parecida com a nossa, ódio àqueles que ousam viver de forma distinta. Não estamos dispostos à empatia – aliás um dos homens mais ricos do mundo a vê como um defeito, e não vê demérito em divulgar isso claramente, não nos inclinamos à solidariedade, não preservamos matas ou animais, queremos acumular cada vez mais dinheiro.

Não vemos o futuro como cooperação, apenas como competição.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.