Avatar – maravilhoso e monstruoso

Wanda Camargo | assessoria@unibrasil.com.br

Todos aqueles, professores ou familiares, que tem a possibilidade de conviver com crianças e jovens por alguns anos, percebem facilmente a constituição de si mesmos que, assim como todos os adultos já fizeram, elaboram de tempos em tempos: a diferença entre seus atos e procedimentos em alguns períodos são surpreendentes, a mudança é visível mesmo nos menores entre eles.

Isso não afeta apenas o domínio da linguagem, mesmo das ciências básicas, mas principalmente a capacidade de expressarem a si mesmos, o avanço da racionalidade sobre a pura emotividade, preservadas as diferenças individuais.

A construção da personalidade ao longo da infância e juventude é muito influenciada pelo meio, pelas experiências boas ou más, pelo acesso à cultura e hoje, mais do que nunca, à tecnologia. Ao longo da civilização, esse tem sido um tema literário, histórico, mitológico, que sempre discutiram o simbolismo do duplo, a necessidade de conhecer-nos intimamente, de distinguirmos entre o que somos e o que gostaríamos de ser, entre o real e o imaginário, entre possível e impossível.

A duplicidade humana se revela sempre que enfrentamos imagens de nós mesmos no desenvolvimento da personalidade, a identidade que autocriamos. Psicologicamente, um confronto com aquilo que gostaríamos de ser, pela influência familiar, do meio em que crescemos, da comunidade em que estamos inseridos, pelos valores que cultuamos, e uma certa  desconfiança do que camuflamos sob esta máscara, já que somos expostos muitas vezes, pelas contingencias da vida, ao sobrenatural, aquilo não pode ser explicado racionalmente: o maravilhoso e o monstruoso, na característica fantástica dos contos de fadas ou de heróis, mas também no insólito e insuportável do cotidiano, que pode ser assombroso.

Tornar-se um indivíduo é, portanto, o progressivo desenvolvimento psicológico resultante entre o que é consciente e aquilo que é inconsciente, a serem integrados na identidade; o duplo se manifesta como um diálogo interno que promove autoconhecimento.

Freud mesmo já analisou a questão do duplo, pois a consciência deve separar o quimérico da realidade, já que as formações do inconsciente não conseguem distingui-los adequadamente.

E esta questão é preservada ao longo dos anos, somos sujeitos, mas também objetos de outros externos a nós, não como quem se vê num espelho, porém como imagem real, diluindo a fronteira entre o que somos e as formas pelas quais representamos a nós mesmos. Isso não é frequente, mas é um susto instantâneo que mesmo adultos sofrem, olhar-se pelo olhar de outrem.

E acontece atualmente que crianças e jovens têm passado muito tempo diante das telas, em games ou ambientes imersivos, com a diferença que em games existe uma continuidade entre sua vida offline e o perfil online, e issonão ocorre necessariamente em ambientes imersivos. No caso dos games, em competições e redes sociais a identidade do jogador ou seus personagens é a humana, porém isso não acontece nos ambientes imersivos, assumindo, portanto, um mesmo “eu” outra constituição de identidade.

Plataformas imersivas e interativas são diferentes quanto à forma como modelam a realidade; as interativas tendem a ter uso massivo, enquanto as imersivas são desenvolvidas para nichos interessados em diferentes habilidades, dado que nelas o jovem pode viver vidas alternativas, não como um alienígena, mas conseguindo como eles escapar da condição de vida terrestre, por meio de avatares que permanecem anônimos ao grande público.

E é exatamente por isso que gostam muito de ingressar nestes ambientes, nos quais, ao abrir sua conta e conectar-se pela primeira vez, já é apresentado a algumas opções de aparência, para nascer naquele mundo com seu avatar, seu “outro”, aquele do lado de lá da tela, com o qual construirá um vínculo forte, singularizando-o cada vez mais assim como ao mundo que este habita.

As relações entre humanos e seus avatares apresentam um caráter prodigioso, enigmático, em função da intensidade das emoções e afetos que desenvolvem com eles, que podem ser de mesmo sexo ou não, altos, baixos, gordos, magros, guerreiros, sereias, criaturas semi-humanas ou monstruosas. É a partir deste avatar que passam a mover-se, adaptar-se, amar ou guerrear.

É como se ele estivesse agora associado à magia toda vez que se transporta para o outro lado da tela, naquela criatura que se movimenta, anda, rasteja, corre, voa, tem armas, esbarra em outros objetos. Envolvido num ambiente extraordinário, num acordo tácito dos mundos virtuais, gasta dinheiro e tempo humanizando seu avatar, enquanto é avatarizado por ele. Raros são os que não se modificam por essas experiências, que costumam afetar intensamente aqueles que vivem muito tempo neste tipo de inter-relacionamento; usuários de sistemas imersivos relatam que nem sempre dominarão ou controlarão suas criaturas e o mundo criado para elas, inclusive com escala e ritmo de temporalidade diferente da vida offline.

Raramente um avatar estará totalmente obediente ao seu humano, e esta incógnita pode ser mais um desafio, pois a criatura que inicialmente é dependente do criador acaba por tornar-se um duplo, que não se confunde ou se mistura totalmente, mas encanta e enfeitiça.

Nestes ambientes, os conceitos de estranho e familiar, aparentemente opostos, estão na verdade interligados, e não por coincidência, classicamente descritas ao mesmo tempo como fascinantes e hediondas. Relembram narrativas como o médico e o monstro, ou a lenda de Ladyhawke, filmada porRichard Donnerem, em que dois amantes estão condenados a separação porque durante o dia ela se transforma em um falcão, e nas noites ele se transforma em lobo; ambos têm “duplos” temporais, caso como o da princesa Fiona em Shrek.

No filme A Marca da Pantera, de Paul Schrader, a questão do duplo não é exatamente temporal, e sim mais próxima das emoções, que poderiam fazer aflorar a descendência de uma linhagem de pessoas felinas que se tornariam perigosas. Vivências alterando comportamentos.

Um filme mais moderno e direto que deslumbra a juventude é Avatar de James Cameron, onde um portador de deficiência é inserido num avatar isento desta incapacidade, e que fica decidido a passar a viver integralmente neste novo corpo, nesta nova ambientação que a princípio julgara estranha. Representa bem – e por isso o sucesso – toda a falta de limites destes simulacros, toda possibilidade de transcender as barreiras biológicas do corpo humano, a liberdade de “ser o que se quer”, o poder irrestrito desejado ao início da vida.

Plataformas imersivas, de realidade virtual ou aumentada estão sendo utilizadas em sistemas educativos, em treinamentos, no comercio, mas no entretenimento costumam ter seus usos de mais longa duração, podendo em alguns casos até viciar, provocando isolamento, sedentarismo e ansiedade.

O efeito que isso terá a formação da identidade ainda é pouco conhecido, esses fenômenos são relativamente recentes, não foram ainda estudados em profundidade, entretanto, como nos demais aspectos da vida, necessitam contenção e alguma maturidade, sendo um novo desafio para o ambiente escolar.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.