Na grande peça Hamlet, Shakespeare reconta a história de como um príncipe tenta vingar a morte de seu pai, na que é culturalmente considerada como a descrição de uma vida entre a loucura real e a loucura fingida.
No entanto, é senso comum que apenas se fingem de loucos os oportunistas e aqueles que estão de fato loucos, e portanto essa ficção de Hamlet é um aspecto da realidade.
Atualmente parecemos ter perdido a capacidade de discernimento entre aquilo que é ficção da vivência ou é razão, e terminamos perdendo a fé na realidade. Afinal, ao relembrarmos o tempo em nossas vidas nos quais fabricamos simulações com maior frequência, ou seja, a infância, percebemos que vivíamos entre dois tipos de “faz de conta”, um em que brincávamos de ser pessoas conhecidas, como professores, pais ou médicos, encenando coisas que havíamos observado; e um outro tipo, aquele em que sonhávamos personagens distantes do quotidiano, em cenários fantásticos e maravilhosos.
Nessas brincadeiras, estabelecíamos conexão entre o que somos e os outros, mesmo quando sozinhos com bonecos ou carrinhos, ou quando assumíamos papéis personificados por nós e por outras crianças quando estávamos em grupo; e estes simulacros infantis, realistas ou fantásticos, trabalhavam as relações afetivas de partilha ou aquelas agressivas do exercício do poder.
A ficção tem a função de testar ou contestar as formas de relação com o mundo exterior, que é povoado por pessoas e objetos que seduzem ou agridem, e no mundo adulto nos movemos entre a observação de Isaac Newton, como um dos cientistas mais influentes de todos os tempos, que disse: “minhas hipóteses não são inventadas”; e a observação como também filósofo da ciência, que declarou “as ciências nada descobrem: inventam”. A contradição entre as duas sentenças desvenda que desde há muito tempo vivemos entre realidade e ficção, descoberta e invenção, e praticamente perdemos a fé na distinção entre elas.
Por vezes olhamos o mundo como possível ficção, nossos maiores pensadores e cientistas viram-no como ilusão: Platão (vemos apenas sombras); cristianismo medieval (o mundo é uma armadilha das forças do mal); Renascimento (o mundo é um sonho); Barroco (o mundo é teatro); Romantismo (o mundo é minha representação); Impressionismo (o mundo é como se).
Em tempos de Fake News, mais do que nunca temos dificuldade de distinguir entre o real e o virtual, entre o correto e o incorreto. Ouvimos relatos de falsificações da realidade com uso de voz, imagem, distorções de pronunciamentos, conexões fraudulentas entre diferentes partes de corpos e de cabeças, pois o virtual é o forjador de algo, fazer parecer real ou representar, aparentar.
A cibercultura acontece com mecanismos digitais que simulam, como na realidade virtual, na realidade aumentada, na criação de memória puramente imaginada, na criação de imagens.
No entanto, o virtual não é oposto ao real, podendo apenas ser oposto do atual, já que o virtual carrega uma potência de ser, enquanto o atual já é ser, o que forma outra realidade, ao manter uma relação sensório-motora com o conteúdo da memória de computador, consegue-se a ilusão de uma “realidade” apenas contida na memória digital.
Especialistas dizem que cometemos um erro grave ao falarmos em vida real e em vida virtual, como se apenas uma delas fosse real e a outra não. Todos passamos um tempo significativo nas mídias sociais atualmente, portanto, temos o desejo de tornar mais permeáveis as fronteiras do real e do virtual. Gastamos tempo e energia emocional no virtual, e assim o material termina por não constituir o único real; as pessoas podem desempenhar papéis diferentes, adotando diversas personalidades nos diferentes lugares de seus contatos, experimentando inúmeros aspectos delas mesmas, em multiplicidades antes impensáveis.
Para muitos, fazer parte de uma comunidade virtual autoriza a expressão mais livre dos inúmeros aspectos de suas personalidades, sem que todos sejam necessariamente mentirosos, pois algumas vezes nossos processos culturais enfatizam a uniformidade e em outros momentos a multiplicidade.
A relação entre ambientes reais e virtuais é anterior ao início da Internet, a Filosofia sempre ressaltou a coexistência da virtualidade e da realidade quando comparávamos passado e presente, pois ambos dependem de percepção e memória.
Virtualidade acontece sempre que percebemos algo, pois associa nossa memória aos acontecimentos, relacionando sentimentos impalpáveis, incomensuráveis que coexistem com a realidade. Quando criamos um perfil virtual, que nos representa e proporciona interações com aqueles com quem temos afinidade, tornamos muito vezes desnecessárias as interações presenciais, fazendo aquilo que seria virtual parte do cotidiano, portanto real.
A nossa época se finge de louca. O mundo é imenso, muito maior do que nossa capacidade de compreensão, enquanto o limite da informação era de alguma forma restrito a algo palpável podíamos absorvê-la, mesmo a mais profunda filosofia e a mais abrangente das artes eram contidas em uma dimensão “humana”: bibliotecas, universidades, palcos, livros, discursos; conhecimentos e sensações que seriam vividos e compreendidos de modo unitário ou coletivo, mas sempre no ritmo dito normal das pessoas.
A Era da Informação, em que tudo o que existe ou foi pensado está ao alcance de um toque de dedo, subverteu essa realidade. A nossa época não se finge de louca, está mesmo louca.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.