Heterotopias

Wanda Camargo | assessoria@unibrasil.com.br

Alguns setores têm normas específicas diversas do geral, como hospitais, navios, prisões e outros, seguem regras e procedimentos próprios, e assim constituem uma espécie de “outro lugar” que, dentro de suas diversas funções, podem representar locais de ordem e controle (como quartéis ou delegacias) ou mesmo de rebeldia, como uma colônia de férias, que funciona em condições não hegemônicas e pode abrigar práticas fora do rotineiro ou da ordem estabelecida.

Filósofos como Foucault dizem que as heterotopias são espaços que existem dentro da sociedade, mas funcionam de maneira diferente, criando um ambiente de alteridade, de tensão entre ordem e desordem, de possibilidades de contestação e resistência. 

Lendo ou ouvindo notícias nos dias que correm, a impressão geral é que o mundo se transformou numa coleção de heterotopias, que não existe mais a “vida comum”, que habitamos um imenso nosocômio, impregnado de subjetividade, diferentes memórias, narrativas disparatadas, interpretações fantásticas, ou seja, constituímos uma comunidade um tanto ou quanto virtual, baseada na polarização e divergências identitárias, ambiguidade e distintas percepções de nós mesmos.

Mente-se em cadeia nacional, negando obviedades filmadas, declaradas em outras ocasiões, feitas diante de testemunhas. Afirma-se realizações inexistentes, declara-se como reais coisas que jamais aconteceram, trabalha-se intensamente a mídia para que esse mundo virtual tenha tudo o que é dito que nele existe, e essa sucessão de falas, criações, exibições, performances e interações sofre um processo de enraizamento social dentro de alguns grupos específicos de pessoas, para as quais, a partir deste engajamento passa-se a dirigir as falas seguintes, desenvolvendo uma biografia social, que quanto mais circula e se torna visível no mundo, mais cria conteúdos e interage, cresce em sua reputação social e, portanto, maior sua popularidade e seguidores.

Estamos confundindo fatos mágicos com fatos sociais – atos jurídicos, processos de ensino, obras técnicas e mesmo ritos religiosos. E na verdade até magia envolve normas e procedimentos que precisam ser corretamente realizados para obter a eficácia desejada, ou seja, que não seja apenas simbólica, e sim efetiva. Intervir na natureza para produzir uma mudança de estado não é atividade de iniciantes, e um bruxo precisa treinar muito para ter respeitabilidade e fama.

Nossos feiticeiros da comunicação com certeza dominam o pensamento mágico e tudo o que é característico dele, como o visível e o invisível, a bricolagem, formas de associação e participação, e são capazes de promover um sentimento de sintonia profunda, mesmo que suas narrativas sejam estapafúrdias.

O engajamento com a tecnologia digital, que atualmente ultrapassa o uso tecnológico e formal, estabelece uma subcultura cujo imaginário está estreitamente vinculado ao pensamento mágico. Isso é extremamente claro nas narrativas maravilhosas/monstruosas, com a monstruosidade não incidindo apenas sobre as aparências e formas dos fatos relatados, mas principalmente em seus conteúdos “ocultos”, suas intenções malévolas de provocar adesões para tirar vantagens não apenas financeiras, mas ao mesmo tempo causar frisson.

Desde o mundo greco-romano, monstros foram relacionados a um enigma, ou seja, uma forma de saber considerada prodigiosa, vindas de informações secretas que remontam à origem dos tempos, de reuniões de pessoas importantíssimas fora do alcance dos comuns mortais, mas que também prenunciam os novos tempos que virão. O monstro é aquele que mostra uma verdade, inalcançável para todos os demais – presente apenas neste Whatsapp em particular – revela um problema, um fato importante, e o enigma precisará ser interpretado, apenas quem acessa e acredita na sua sapiência infinita, e possui infinita credulidade terá acesso a ele.

O canto suave das sereias está ao alcance de sua mão, elas próprias seres maravilhosos, parte humana e parte não, sedutoras, que trazem a você diretamente “a novidade que veio dar à praia”, e nem precisamos muita cultura para desvendar estas Esfinges, maravilhas ao mesmo tempo monstros, que comunicam o conhecimento profético; a verdade que não é transparente exceto pelo canal de notícias gerado lá de longe, anonimamente, caindo diretamente no seu celular.

Novos convertidos não suspeitam das técnicas, da repetição de certos procedimentos que ensinam como pensar e ter uma conduta adequada, da prescrição do caminho a ser seguido, como todo bom monstro sabe fazer.

Nossa cultura audiovisual e de parca leitura – livros são, como disse o autonomeado estadista, “um amontoado de um montão de palavras”, na esteira de um processo de polarização e cultivo do ódio e da sempre conveniente ignorância -, constituem alegorias, produzem fatos sociais previamente descritos e corretamente interpretados por alguma besta-fera de plantão.

É preciso apenas combater os infiéis, e politicamente desautorizar e destruir todo resquício de cultura porventura existente na população não muito letrada, repetindo ritualisticamente até a exaustão os conteúdos disseminados por meio destes veículos, produzindo um sentimento de inquietação e angústia, e ao mesmo tempo prazer de ser os únicos depositários de tanta sabedoria. Falou-se, em outro contexto, que “burocracia é a arte de criar dificuldades para vender facilidades”, a política como a praticam muitos talvez seja a arte de criar horror e miséria para vender soluções, que pouco solucionam, mas custam caro e geram votos.

Nesta heterotopia, é possível distinguir o bem do mal?

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.