Desde sempre a música tem acompanhado a raça humana, parecemos ter por ela profundo amor. Crianças e adultos de forma geral recorrem a ela nas suas tristezas ou alegrias, como forma de conforto ou de comemoração; fomos, portanto, desenvolvendo formas diversas de apreciá-la e executá-la, desde as mais simples sonoridades à mais complexas, mas sempre fazendo parte de nossas vidas. Tivemos a música quase pastoral de Vivaldi, a perfeição “matemática” de Bach, o espiritualismo de Mozart, o triunfalismo genial de Beethoven. E ao final do século dezenove, quando a visão do homem se volta para seu interior – não é coincidência o surgimento da Psicanálise nesta era – Wagner produz música que expressa as paixões que até então a humanidade preferia ignorar.
Um filme icônico da ficção científica, “2001 – Odisseia no Espaço”, utiliza magistralmente o recurso sonoro: no início o tranquilo flutuar de uma nave espacial é embalado pela valsa “Danúbio azul” de Johann Strauss II, a seguir os movimentos de um grupo de antepassados nossos quando encontram o “monólito” que simbolizaria o início da civilização é acompanhado pelo prelúdio perturbador de “Assim falava Zaratustra” de Richard Straus. Dois compositores, com sobrenomes parecidos, e cujas composições ressaltam estados de espírito diferentes da humanidade quanto à tecnologia: a esperança de que o voo ao espaço nos libertasse harmonicamente, e o horror expresso no massacre que os “homens primitivos” promovem entre seus iguais quando aprendem a usar paus e ossos como armas. Bom simbolismo de nossa relação visceral com a música, dado que a apreciação artística é cumulativa ao longo de nossa existência, agregamos novos interesses sem necessariamente rejeitar os antigos: ontem gostávamos de cantigas de roda, depois das populares, daí acrescentamos o jazz ou as clássicas, sem deixar de ouvir com muito prazer nossas canções de infância.
Mães que cantam para seus filhos sabem instintivamente o poder de acalmar, de gerar laços, de transmitir sentimentos, que sons harmoniosos podem produzir; nossas memórias mais duradouras parecem estar associadas a música, na internet é fácil encontrar pessoas com Alzheimer em estágio bastante avançado que conseguem cantar suas melodias preferidas mesmo depois de perder praticamente todas as demais habilidades cognitivas. Em sala de aula professores talentosos e interessados na aprendizagem utilizam muito o recurso de transformar em melodia seus assuntos, colando os conhecimentos mais importantes a serem memorizados em trechos de canções que estejam fazendo sucesso entre crianças e adolescentes. Embora a maior parte dos conteúdos deva ser compreendido e não simplesmente decorados, alguns deles auxiliam o avanço cognitivo quando estão mais presentes na memória, como é o caso de uma tabuada ou tabela periódica, por exemplo.
Sendo o ser humano basicamente um animal falante, seus discursos tem um papel fundamental na preservação da identidade, e é inegável que cada povo tem, na própria linguagem uma musicalidade característica, da qual faz parte inclusive o que denominamos sotaque, através do qual identificamos, salvo raras exceções, a procedência estrangeira de pessoas que falando extremamente bem nosso idioma ainda assim não são naturais de nosso país. Esta cadência de cada língua é parte da totalidade da cultura de uma comunidade, condicionada inclusive pelo ritmo de nossa fala e tipo de sons ouvidos desde a infância, forma de expressão que constitui a semelhança cultural, aquilo que nos une e solidariza. Por isso reconhecemos inclusive as maravilhosas diferenças regionais de um mesmo país: nascer no sul, centro ou norte é parte inerente de nosso modo de expressão. Por isso, mesmo que fora do currículo formal, música deve ser escutada, cantada, tocada em múltiplos instrumentos e ocasiões, e sempre estará presente nas boas instituições de ensino, não apenas nas festividades, mas integrada ao sistema educativo como um todo.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.