Ouvimos esta semana um general admitir, candidamente, ter elaborado o plano, muito famoso na mídia, para assassinar três autoridades da República. Em sua defesa, ele diz que isso não passou de um “pensamento digitalizado”, e embora se saiba que tropas de elite chegaram a ir para as ruas seguir um dos alvos para cumprir o pensamento digitalizado com suas armas, garante que ninguém teria visto tal plano.

Houve inclusive conversas pelo rádio perguntando se haveria a autorização formal para a execução (nos dois sentidos da palavra) do plano que ninguém teria lido. Entretanto, considera-se a salvo das consequências legais, pois um pensamento digitalizado não pode ter implicações passíveis de penalidade.

Possivelmente, o letramento desta pessoa, um pouco deficiente, ou muito oportunista, não comporta que o identificado como “digital” possa implicar em responsabilização. Não é escrita, são caracteres numa tela. Foram impressos, mas é somente pensamento.

Como diria Pierre Lévy, pesquisador em ciência da informação e comunicação, a atividade cibernética “recobre na verdade a atividade multiforme de grupos humanos, um devir coletivo complexo que se cristaliza sobretudo em volta de objetos materiais, de programas de computador e de dispositivos de comunicação. É o processo social em toda sua opacidade, é a atividade dos outros, que retorna para o indivíduo sob a máscara estrangeira, inumana, da técnica”.

Segundo ele, “a inteligência coletiva é a verdadeira responsável pelo desenvolvimento das tecnologias virtuais”, e que outros pensadores, como Noam Chomsky, linguista norte-americano, digam que “a habilidade de usar signos linguísticos para expressar pensamentos formados livremente marca a verdadeira distinção entre o homem e o animal”.

A escrita, que torna uma linguagem visível e concreta, representa uma das mais importantes realizações humanas, uma conquista intelectual e cultural que transmite cultura e preserva memória. É a verdadeira forma de uma civilização, pois proporciona armazenamento e transmissão de conhecimentos ao longo das eras, amplia a memória e permite uma comunicação que vence distâncias.

Linguagem é uma das capacidades cerebrais, não sendo propriedade exclusiva de uma espécie, várias outras desenvolvem as suas mesmo que rudimentares: baleias, macacos são bons exemplos; no entanto a escrita depende da cognição humana. Temos uma História em função dela, embora alguns não tenham o que se pode chamar um bom aprendizado, seja por razões materiais – pobreza extrema, ausência de escolaridade – ou pessoais, como baixo desenvolvimento intelectual e dificuldades de diferentes tipos.

Nossa sociedade global vive hoje o início das novas modalidades de leitura e de escrita, advindas das tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede web, a internet. Tais novas práticas podem ser consideradas o letramento na cibercultura, definem um novo espaço de troca de informações, diferente das tábuas de argila, madeira, pedras, couro de animais, papiros, pergaminhos, papel. Telas provocam mudanças nas formas de interação entre seres humanos e as formas de acesso ao conhecimento, entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto. A hipótese é de que essas mudanças tenham consequências sociais, mudanças nos discursos e formas de inter-relacionamento, já que existe uma nova modalidade de escrita e leitura, com suas regras, simbologia e atração dos mais jovens.

O processo educacional, nos seus vários níveis, já detecta estudantes com cada vez mais dificuldades em compreender os textos, tanto aqueles impressos em papel quanto nos meios digitais, nos quais inclusive criou-se o fantasma do “textão”, ou seja, aqueles que ultrapassam algumas poucas linhas. Pesquisas estão sendo realizadas para verificação da real diferença na compreensão textual entre estas modalidades, e sobre as competências necessárias para realizar a leitura nos diferentes meios.

Determinar se a escolha do suporte trará impactos aos processos educativos em termos de aumento na cognição ou sua diminuição é relevante, num momento em que alguns países nórdicos estão voltando aos livros e abandonando um pouco as telas, e que escrever à mão pareça ter influência decisiva na capacidade de memorização e aprendizagem mais profunda.

Embora tenhamos publicamente a exibição da falta de noções básicas de cidadania, estudo e respeito de um certo capitão reformado, de um general poderíamos esperar maior nível instrucional, conhecimentos com alicerces mais sólidos, seja pela faixa etária, seja pela passagem por um sistema educativo teoricamente mais complexo e exigente como o da formação militar no país.

O acesso digital às informações pode até facilitar a comunicação não violenta, boa análise do exercício do poder, controle da agressividade e atividades de atendimento às comunidades carentes, de atenção às necessidades mínimas de empatia, inclusão e solidariedade, e isso pode representar influência positiva para a melhoria da educação brasileira, civil e militar.

Entretando, é indispensável a ciência de que o escrito implica responsabilidade.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Educação Superior do Brasil – UniBrasil.