A narrativa fundadora do cristianismo é a ressurreição de Jesus três dias após a crucificação. À parte os milagres atribuídos e suas palavras de paz e solidariedade, o que ficou de modo marcante foi ter vencido a própria morte.

Desde o início do desenvolvimento da consciência humana, e portanto do conhecimento de que morreremos, a ideia de vida após a morte e ressurreição permeia nossa cultura. Os egípcios criaram maneiras sofisticadas de construção de tumbas, algumas magníficas, e preservação de corpos com o propósito de mantê-los intactos para ressurreição. Na China foi descoberto no século passado o “Exército do imperador Qin”, uma quantidade imensa de esculturas de terracota com grande detalhamento, representando o exército que acompanharia aquele imperador após a morte. O mito grego de Orfeu quase resgatando Eurídice do Hades é exemplar. Nos Evangelhos há, também, o relato da ressurreição de Lázaro por ação de Cristo.   

A morte e algum tipo de fuga dela talvez constituam uma das mais centrais questões filosóficas. Nossa civilização não foi construída apenas com ações e acontecimentos concretos, mas também com mitos e fábulas, muitos dos quais têm se mantido e perpetuado, como fênix que renasce de suas próprias cinzas, pois crises e tragédias contribuem para a sua reinvenção. Em situações difíceis que envolvem intenso sofrimento, a tendência ao escapismo e ao utópico se manifesta, já que fugir ao angustiante é sobretudo reação humana.

Entre nossas fantasias recorrentes está a Utopia, e refletir sobre ela é tarefa difícil e complexa. Não é simples delimitar o que é este sonho, que carregamos na história humana desde o século XVI, e não habita hoje apenas nossa literatura, mas também nossa espiritualidade e anseios de liberdade política, com suas promessas de solidariedade entre os homens, amor fraternal e paz na terra.

Na dimensão política, a utopia se manifesta como questão social, complexa e não limitada ao campo onírico, tratando da perspectiva da construção de uma nova sociedade, talvez mais justa e menos competitiva. No entanto, este campo radicalizou-se ao longo dos anos, e a proposta de uma comunidade mais equânime caiu algumas vezes em totalitarismo.

Por isso, muitas vezes se confunde com aquilo que poderíamos denominar mais apropriadamente como ideologia, ou seja, aquilo que no nosso grupo ou família passa a crer como verdade cristalina, por mais ilógico que possa parecer a todos os demais, criando espaços restritos, tidos como ideais, e uma delas, dadas as recentes notícias publicadas em nosso e noutros países passou a ser ressureição.

No Brasil recentemente um pastor declarou que ressuscitaria após três dias de sua morte, no que foi acreditado por sua esposa e afiliados de sua congregação, gerando um imenso problema para a própria funerária e sua cidade, já que uma pequena multidão que exigiu esta espera, não queria permitir o enterro mesmo após este prazo. Num outro país, envolveu a perspectiva de retorno à vida do filho de um ex-presidente, morto há vários anos; voltaria para ser vice de um candidato derrotado em pleito anterior, absurdo por pelo menos dois motivos sensatos: era de um partido contrário e, se voltasse, sendo um milagre, deveria ocupar a cabeça da chapa. A ideia delirante, fora absoluta da realidade, reuniu também pequena multidão na cidade de Dallas, que esperou por horas esse retorno. Ao fim do dia, correu a notícia de que ressuscitaria em outra data, e, com esta boa-nova, todos foram para casa com esperanças renovadas.

Essas crenças, motivadas por palavras icônicas como ressureição, satanismo, comunismo, constituem os mitos e fábulas modernos que alucinam certa camada da população, normalmente muito pobre e sem acesso à educação de qualidade, os quais se identificam nestas improváveis constelações de valores, que concretizam a noção da utopia como um modelo, um reino dos céus concebido dentro de uma corrente político-ideológica, na qual apenas após a destruição dos inimigos poderemos alcançar uma sociedade mais justa e equânime.  Por isso estamos cada vez mais agressivos, e não menos: é preciso que nada, absolutamente nada, se interponha entre nós e nossos sonhos mais desatinados, agredimos jornalistas, sociólogos, economistas e qualquer outro que ouse sugerir que possamos não estar absolutamente certos.  

Como essa percepção envolve uma necessidade de acontecimentos mágicos, o desequilíbrio emocional é motor para novas teorias comprobatórias, pois nos informamos apenas com aqueles veículos e/ou pessoas dentro de nossa bolha.

Tal pensamento mágico, apoiado em fantasias de onipotência, cria uma autenticidade psíquica que cada indivíduo experiencia como mais real que o mundo externo – uma realidade inventada, que confirma a estrutura estabelecida no mundo interno. Porém, como o sabem todos os psicólogos e psiquiatras, o pensamento mágico não pode construir nada que não sejam novas camadas de construções mágicas.

Já trabalhado por Freud, o pensamento onipotente tem apenas um objetivo: não enfrentar a verdade, criando um estado mental no qual a pessoa “cria” a realidade para todos, e este estado psíquico não considera a experiência, apenas o pensamento. Essas fantasias abrangem virtualmente tudo que a rodeia, e seu pensamento se torna alucinatório, o que impede aprender a partir da própria experiência.

O processo educativo, que permite um melhor conhecimento do passado e análise do presente, é um dos grandes auxiliares para que a mente evite tais armadilhas; o hábito do estudo permite discernir com mais adequação o concreto do virtual, veracidade de lenda, fato de ficção.

 

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.