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TV GLOBO / Renato Rocha Miranda

‘Não sou nem correta nem perfeita’

Na novela Passione, de Silvio de Abreu, Fernanda Montenegro é Bete, a matriarca da família Gouveia, com quem diz não ter nada em comum: A não ser pela paciência da maternidade. O resto não, porque ela não é do meu mundo. Até onde sei, ela é correta, perfeita. Mas eu não sou nem correta nem perfeita. Tenho as minhas incorreções e as minhas imperfeições. Perto de completar 81 anos, dia 16 de outubro, 60 dedicados à TV e ao teatro, Fernanda não tem do que se queixar na carreira e na vida: Não posso nem ousar dizer isso. Se tenho nem dou ouvidos. Seria injusta. Nessa altura, tendo corrido 90% da vida, se cheguei até aqui inteira, pensando e falando…. A atriz, que começou em 1950, também deixou sua marca no cinema. Recebeu muitos prêmios e por pouco não conquistou o Oscar com ‘Central do Brasil’, de Walter Salles. Sobre o que chama de ‘quarta idade’, considera que o melhor dessa faixa etária são os filhos, a atriz Fernanda e o diretor Claudio Torres, frutos de seu casamento com o ator Fernando Torres, com quem foi casada 60 anos (ele faleceu em setembro de 2008) e os netos, Antonio, de 3 anos, Davi, 10, e Joaquim, 11. Como define Bete Gouveia? É uma senhora rica, representante das grandes famílias, dos grandes empresários, dos que aparentemente estão dando certo na vida e, em princípio, é boa. Mas como em novela a gente nunca sabe o rumo das coisas, vamos esperar para ver o que cabe no latifúndio da dona Bete.Que final espera para ela? Do ponto de vista de amores, não sei que rumo ela vai tomar. Agora, do ponto de vista da maternidade, vai ter que dar conta daquela ninhada de gatos que teve na vida. Cada um é mais maluco do que o outro, com exceção do chamado bastardinho (como diz o Saulo), que é bom.Como tem sido a repercussão nas ruas? Enorme! É interessante que eles não me confundem com a personagem. Falam como se fosse uma terceira pessoa. Esse horário da novela é muito visto, desde a pessoa mais simples aos representantes da nação. O grande top é a das oito, que agora é das nove. Eles dizem: ‘Dona Fernanda, que filhos, hein?’A senhora disse que não ia mais fazer uma novela inteira…Pois é, uma das minhas imperfeições. Às vezes, não tenho palavra. (risos)Foi casada 60 anos com o Fernando Torres, o que é uma raridade no meio artístico. Concorda? Não acho que é só na carreira artística. É que quando a gente se separa, quando se é famoso mesmo, vai até para o noticiário internacional. Na vida comum todo mundo casa e separa, casa de novo ou fica junto o resto da vida. Não tem diferença. Acho até que é uma visão preconceituosa sobre a chamada vida artística. Também entre os amigos que não são artistas isso acontece.Já se acostumou sem a presença do Fernando? Tem vontade de ter outro companheiro? Ainda não me acostumei. Foram 60 anos juntos. É uma imagem muito presente, muito viva dentro da casa, dentro das gavetas, dentro da alma mesmo… Mas também não me sinto solitária ou jogada fora ou que precise de alguém para me ajudar a viver. Graças a Deus, não é que eu me baste, mas é quase isso.Como conciliou o papel de mãe e atriz? Ah, não se concilia. A gente vai tentando. Não é uma coisa que eu possa explicar como é que se faz. Vai se vivendo e vai se ajeitando. Mulher, hoje em dia, está em todas as frentes. Ainda tem que ser bonita, cheirosa, boa de cama, mãe extremosa, filha exemplar. Como é sua relação com os filhos? No que eu possa perceber é muito boa. Somos do mesmo ramo, então graças a Deus o que não falta é assunto. Eles pedem a minha opinião e eu também peço a deles. A gente troca muita figurinha. Alguma vez se sentiu culpada por não ter dado atenção a eles? Toda mãe se sente culpada. Isso é lugar comum. Se eles corressem para um outro tipo de trabalho eu teria pensamentos bem diferentes dos que tenho hoje. Mas na medida em que se definiram pelo mesmo espaço de trabalho, então eu penso: ‘Não errei tanto’.O fato de você e Fernando serem atores influenciou os filhos em suas escolhas? A casa de atores é do ponto de vista econômico, de segurança, tradicionalmente instável. E por incrível que pareça, viver na instabilidade é uma grande aventura. Nas horas mais difíceis, o núcleo familiar se prova. Isso aconteceu algumas vezes. E também como a gente nunca esconde a vida da gente dos filhos, eles estão sempre nos lugares onde nós trabalhamos, então aquilo que parece um espaço indisciplinado, marginalizado — para muitos é essa a visão que têm da gente, ainda e sempre – para nossa vida, nosso sistema de trabalho, para os nossos núcleos de trabalho, é isso aí. Desde o momento que os filhos nunca são escondidos que vem para o nosso espaço que é o mundo do faz de conta, do sonho, do imaginário, afeta o mundo da criança.

Os primeiros contatos com elenco, com leituras de peça, sempre foram feitos em casa. A gente tem uma vida muita aberta, não esconde nada: ‘Isso aqui não pode ver, isso não pode ouvir, não pode aquilo…’Faz todas as vontades dos netos? Sabe que nunca tenho tempo de fazer? Os netos são muito queridinhos. Pergunto o que querem e dou para eles. Tem o problema do chocolate, dos docinhos. Tenho uma amiga que sempre disse pra ela: ‘Quando nós ficarmos velhinhas, vamos sentar e colocar a nossa vida em dia com o tempo’. Acontece que já chegou – estou na quarta idade — e continuo trabalhando tanto que não posso mais dizer essa frase. A gente acha quando se é jovem, que 30 anos adiante vai ser impossível, você não vai existir com a sua capacidade. Com 50, 70 e 80 menos ainda. Mas eu penso que a geração que está nessa fase de 80 para 90, ou até mais, é uma geração que sobreviveu (não tinha antibiótico, hormônios, agrotóxicos), está inoculada.Na TV, quem são seus autores preferidos? São os com quem tive diretamente uma ligação. Porque eu trabalho muito e não tenho tempo de ficar pendurada na TV vendo novela para saber de todos os autores. No horário das 21h, só ainda não trabalhei com a Gloria Perez, que algum dia pretendo ter essa oportunidade. Mas trabalhei com o Manoel Carlos, Gilberto Braga, Silvio de Abreu, fiz uma minissérie de Aguinaldo Silva, outra da Maria Adelaide Amaral. Trabalhei com Lauro Cesar Muniz, fiz a Zazá, uma personagem deliciosa. João Emanuel só fiz ‘Central do Brasil’, o filme, em que ele escreveu o roteiro junto com Marcos Bernstein. Tenho ótimas lembranças de todas as novelas que fiz. Ah, e o Luiz Fernando Carvalho, que fiz três ou quatro trabalhos e a hora que me chamar, largo tudo para trabalhar com ele.Gosta de ser chamada de grande dama do teatro brasileiro? Sinceramente, não! Porque nem é isso. Fico assim, olhando e pensando, quem é essa pessoa? Às vezes, é uma espécie de tampa de um túmulo.O que ainda não fez que é sonho na carreira? Completei essa idade, então o que se apresentar, desde que eu ache que ali tem algo vital, tudo bem. Terminada a novela, volto a fazer ‘Viver Sem Tempos Mortos’ pelo Brasil, e devo fazer o filme ‘O Tempo e o Vento’, com direção do Jayme Monjardim, mas só no ano que vem.É vaidosa? Sou, mas não deformada pela vaidade. Ando no calçadão da praia, quando tenho tempo faço exercícios. É contra plástica? Não sou contra nada. Quem sou eu? Pelo amor de Deus! Acho que cada um faz com o seu corpo o que quiser. Se a pessoa não se sente feliz, se acha que incomoda certa visão de si mesmo, fisicamente, vai lá e conserta, bota sua alma em paz. Tem umas que são perfeitas. Eu sou conformada com a minha cara. E depois se não se começa a fazer pequenos consertinhos aos 30, 40 anos não dá para esperar cair tudo para um dia levantar de uma vez, porque vai ser um choque para você mesmo. Tem até um poema: ‘Em que espelho eu deixei a minha face.’As personagens que fez tiveram alguma influência na sua vida? As grandes personagens que fiz, claro! Porque você não passa por uma dramaturgia de primeiro plano, dos grandes poetas, sem que eles marquem você. Por exemplo, Molière, Nelson Rodrigues, Harold Pinter e Friedrich Durrenmatt.Em todos esses anos, o que acha que mudou no ofício de ator? A definição mesmo de atriz ou de ator. O mundo eletrônico, que é o mundo da TV, das novelas e minisséries, trouxe para o campo de atuação pessoas que não têm formação em palco. Que não passaram por um aprendizado difícil, duro, lento. Então, tenho nitidamente em mim essa visão do que é ser ator, vindo de uma estrutura teatral dura que exige disciplina, dedicação, objetividade, para esse outro mundo de resultado imediato, eletrônico. Como diz o Pedro Cardoso, você tem adestradores que pegam uma pessoa absolutamente crua e assim, com um esforço notável, às vezes, conseguem um resultado. Não tem tempo de amadurecer nada, tem que produzir efeitos nesse ser humano que está na frente dele, ajudando a decorar, ajudando nas intenções, enfim, tendo que obter resultados imediatos. Isso, às vezes, resulta, mas não está sedimentado à vivência do que é ser ator. Está apenas executando um comando, cumprindo uma meta e a própria máquina ajuda a obter resultados. Mas isso também não quer dizer que esses atores que vêm da indústria da imagem não possam fazer suas carreiras brilhantes, e com o tempo, ter uma consciência de atuação e ter resultados extraordinários. Atualmente, a indústria das ‘celebrities’, o parque gráfico de notícias de TV é enorme. Lá fora é a mesma coisa. Já foi mais no tempo de Hollywood, que era uma meca. Por incrível que pareça, as TVs têm uma espécie de ‘revival’ modesto disso. Então, é assim: você tem o bicho teatro, o ator que está nos palcos e aqueles que brotam através dos olheiros. Porque a novela precisa de gente bonita e até fora do padrão médio brasileiro: magros, altos, músculos trabalhados, queixo quadrado, dentadura perfeita. Isso raramente está nas escolas sérias de teatro. O ator de teatro pode ter a cara que quiser. No teatro você tem um Walmor Chagas, um Raul Cortez, Paulo Autran e tem também um Procópio Ferreira, Flávio Migliaccio, Gianfrancesco Guarnieri. Com quem gostaria de contracenar? Já contracenei com quase todos. Estou aqui matutando, quero me lembrar de alguém com quem não tenha cruzado no teatro ou na TV. Tenho a idade da televisão. Fui a primeira atriz no Rio de Janeiro contratada pela TV, em janeiro de 1951. Sou testemunha ocular da história.Tenho 60 de palco e 60 de TV, portanto são 120 anos. Teve períodos em que se trabalhou noite e dia. Isso sem contar cinema. Até parece que a gente chegou assim, saído de dentro da mãe da gente. E não foi assim. Correu-se muito, esgotou-se muito, insistimos muito.Quais programas de TV que acha que poderiam ser banidos da programação? Felizmente ou infelizmente tem gosto para tudo. Do meu ponto de vista, lamento tanta perda de tempo com a qual se poderia realmente tocar a alma do espectador, até divertindo. Agora dizer ‘é esse, aquele outro’, a lista é tão grande, que sobra muito pouco. Faço TV, mas vejo pouco porque trabalho muito. Não tenho paciência para ficar na Internet, por exemplo. Tenho que chegar a essa época. Tem o mesmo prazer em fazer novelas, cinema e teatro? Sim. Trabalho com prazer. Posso dizer que estou cansada, que é difícil, mas é muito mais para desacelerar. Mas sempre com prazer. Estou sempre pronta, sempre inteira, sempre de mãos geladas. Achando que não vai dar, que não vou chegar lá. A experiência não vale nada. O emocional não vale nada. Mas sempre alegrinha.Como foi a experiência de concorrer ao Oscar? Ficou feliz? Isso já tem 10 anos, já é matéria morta, mas na verdade foi um momento que me espantou. Espantou tanto que parece que não era eu, que era outra pessoa que estava ali com aquilo tudo acontecendo. Assisti, mas achei que nunca iria ganhar aquele prêmio. Chegar ali já foi o máximo, ainda mais nesse mundo hollywoodiano, no qual a minha geração cresceu. Às vezes acho até que eu me despertei para o palco de tanto que eu amava ir ao cinema e ainda amo. Vou ao cinema como se tivesse 15 anos. Gosto de chegar antes do filme começar, gosto de tela grande, daquele ritual. Pelo menos na minha casa nós íamos ao cinema três vezes por semana. No fim de semana, íamos para a Cinelândia e assistíamos três filmes. Estar lá, naquela meca do cinema, vendo seus ídolos já idosos, é uma experiência muito bonita, uma emoção grande. Devo isso ao Walter Salles. Em tempos de eleições, acredita que, no Brasil, é possível pensar em uma mulher para presidente? Não vou entrar nesses detalhes. É colocar a mulher na condição de algo excêntrico, ou de não natural, ou de fenômeno da natureza. Se uma mulher chegar lá, chega como uma criatura, como ser humano. E não porque é o primeiro sexo ou o segundo sexo. Eu me nego. Se for homem é natural. Se for mulher é uma aberração da natureza?!

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Regina Rito
Agência O Dia