Enquanto bilhões de pessoas em todo o mundo abraçavam-se saudando o novo ano e desejando-o melhor que os anteriores, as forças da intolerância, da guerra e da confusão prosseguiam, inexoráveis, suas trajetórias. A Somália sendo invadida, o Iraque com sua guerra civil, o Rio de Janeiro sob ataque do crime organizado, são todas faces da mesma moeda. Quem sobrevive, mantém as esperanças, mas quem dá azar e é pego por uma bala perdida (ou com endereço certo) na avenida Brasil, por uma bomba ou um morteiro lançado por um caça que, ele não sabe nem se importa, é do inimigo, não prossegue.
Numa obscura sala em Kadhimiya, até há pouco conhecida como Campo Banzai a nordeste de Bagdá, o nó da corda fechou-se inapelavelmente ao redor do pescoço de Saddam Hussein. Seu corpo nem ao menos conseguiu balouçar, eis que, satisfeitos com a vingança cumprida, as atuais autoridades iraquianas enfiaram-no logo num lençol branco e apenas permitiram uma foto oficial para comprovação do mal feito. G.W. Bush declarou que o julgamento fora justo, no mesmo momento em que um ataque em Bagdá tirava a vida de outras trinta pessoas.
Vingar-se assassinando a quem nos fez mal significa igualar-se ao assassino. Fazê-lo pendurando o agressor por uma corda é uma forma adicional de barbarismo que já foi praticada nos Estados Unidos e que no mundo dito moderno persiste, além do Iraque, no Egito, Iran, Japão, Jordânia, China e Filipinas. Piores são os que adotam o apedrejamento (Afeganistão, Iran) e a decapitação (Arábia Saudita). Das cerca de 2.200 execuções que aconteceram no mundo todo em 2006, a China foi responsável por 82%, muitas delas cumpridas nas campanhas públicas denominadas de “Golpear Forte”, em geral coincidentes com os grandes feriados nacionais como o Dia do Ano Novo Chinês ou o Dia das Crianças. Os Estados Unidos (permanecem na quarta posição, logo após Iran e Arábia Saudita) estão entre os 73 países que incluem a pena de morte em seu código penal e não dão sinal de arrependimento, por mais que se demonstre que a criminalidade é maior nos 38 estados que adotam a pena capital do que nos 12 que não o fazem. Quando Bush foi governador do Texas, de 1.995 a 2.000, uma de cada três execuções judiciais ocorridas nos Estados Unidos foram por ele assinadas. Hoje, os corredores da morte continuam abarrotados principalmente na Califórnia, Texas e Flórida, onde “vivem” 43% dos 3.366 condenados à espera de que a injeção letal lhes seja aplicada.
Não há dúvida de que o enforcamento de Saddam joga muito mais lenha na gigantesca fogueira da guerra no Iraque, inclusive porque foi uma provocação frontal (e desnecessária) à crença muçulmana ao ser cumprida no primeiro dia do Eid al-Adha, a Festa do Sacrifício, quando os carneiros são sacrificados, lembrando o profeta Ibrahim, em homenagem a Alá. Saddam foi imolado como um carneiro a mais. Nas mesquitas paquistanesas e afegãs, os mulás seguidores de bin Laden comemoram e agradecem pelo presente de ano novo. O martírio de Saddam pode transformar-se num trunfo de alto valor para o terrorismo em sua luta contra o ocidente. A crise que afasta o mundo da paz tem outras razões, mas certamente uma delas é que lhe faltam vozes que o tragam de volta à razão.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, Analista internacional