Em Tiananmen, centro de Pequim e palco do massacre da praça da Paz Celestial em junho de 1989, esta semana chineses de todas as idades transitavam apressados com o nariz e a boca cobertos por máscaras na vã tentativa de reduzir os efeitos da poluição no fenômeno, causado pelos carros e pelas fábricas, conhecido como arpocalipse. Não entendem porque devem pagar com a própria saúde pelos efeitos da modernidade e pelos programas de intensificação da produção estabelecidos pelo governo. O intenso smog não permite enxergar mais do que o desenho dos palácios ao fundo. No meio da multidão uma idosa senhora recém chegada da província de Zhejiang subitamente deu um grito, arregalou os olhos e nitidamente viu o rosto redondo do presidente Mao, falecido há 37 anos, observando-a de dentro da nevoa como se estivesse a ordenar-lhe algo.

Nem sempre foi assim e só os mais velhos guardam lembranças do Grande Timoneiro. No final do ano passado a série FGV de Bolso lançou A história da China Popular no século XX, um pequeno livro escrito por Shu Sheng que nos faz recordar o quão sinistra tem sido a história recente do grande país asiático. Nos quatro anos que se seguiram à tomada do poder pelos comunistas em 1949, cerca de 5 milhões de pessoas foram executadas na campanha de repressão aos contrarevolucionários e de imediato a Guerra da Coréia cobrou a vida de mais 800 mil chineses. O sistema de cadastro familiar criado nessa época, o Hukou – exigido para obter do governo os racionados bens essenciais e que fixou cada habitante na sua área residencial -, ainda hoje é utilizado e transforma em clandestinos subremunerados os que buscam trabalho nas maiores cidades. Com a coletivização foi possível a Mao entre 1958 e 60 ordenar o Grande Salto para a Frente que logo colocou 100 milhões de camponeses nas obras de irrigação e tentou obrigar as mulheres a produzir alimentos para o dia a dia. Contudo, ao voltar de uma viagem a Moscou onde prometera que a China ultrapassaria a Inglaterra na produção de aço, Mao deslocou 90 milhões de trabalhadores para os fornos de quintal construídos sob orientação do Partido Comunista da China, o PCC. O resultado foi a Grande Fome que em escala gigantesca assolou o país. Só na província de Hunan 2 milhões morreram num prazo de cinco anos, pois as colheitas não foram feitas pela falta de mão-de-obra.

Ao invés de corrigir as falhas e aceitar as críticas, começou o expurgo dos quadros partidários denunciados como oportunistas de direita. O fracasso do Grande Salto coincidiu com o começo da paranóia de Mao Tsé-Tung e de sua esposa Jiang King (nomeada Chefe de Polícia para reprimir a cultura), estimulando um verdadeiro processo psicótico coletivo que gradativamente tomou conta dos quadros remanescentes do PCC. Juízes e advogados viram-se delatados por defenderem o cumprimento das leis e não das orientações partidárias. Com as faculdades de Direito fechadas, os professores foram enviados para reeducação rural, dedicando-se à criação de porcos ou à lavoura. Cada vez mais desconfiado da existência de traidores no partido, Mao permitiu o surgimento de brigadas de Guardas Vermelhos, em geral formadas por jovens de 13 a 19 anos, encarregando-os no começo de 1966 de fazer a Revolução Cultural, um dos mais trágicos períodos da história chinesa e da humanidade. Brandindo o livrinho vermelho de Mao, assumiram a direção das escolas para implantar a reforma do ensino proposta pelo presidente que em essência consistia na redução da escolaridade, simplificação das matérias e combinação dos trabalhos manual e intelectual. Os campos de trabalhos forçados encarregaram-se do resto. Após quase dez anos de terror juvenil, o PCC mandou camponeses pobres assumirem o comando das escolas e convenceu os jovens a também viverem no campo, para aprenderem com as massas

A morte de Mao Tsé-Tung em 1976 aos 86 anos possibilitou o golpe orquestrado por Deng Xiaoping e a prisão da Camarilha dos 4, á qual pertencia Jiang King. Nas ruas, tímidos cartazes surgiram pedindo o direito de viver como seres humanos. Mesmo negando o modelo ocidental dos três poderes, a 4ª. geração do partido, formada por tecnocratas sem ligação com os revolucionários de mais de seis décadas atrás, conferiu prioridade à economia e conduziu a China ao espetacular progresso dos tempos atuais. A posse de Le Keqiang, 57 anos, já da 5ª. geração, como 1º ministro (ao lado do Chefe de Estado Xi JInping, 59), é emblemática dos novos tempos. Ele formou-se na primeira turma de direito pela universidade de Pequim, reaberta após o fim da Revolução Cultural.  O conformismo e a obediência enfatizados nas políticas e práticas do PCC especialmente no período 1949-1976, conduziram o povo chinês – acostumado a 2 mil anos de regimes imperiais de governo – a submeter-se sem qualquer efetiva reação individual ou familiar à escravidão e à humilhação. Agora a China volta a querer dominar, desta vez economicamente, o mundo, mas que confiabilidade tem? O fantasma de Mao continua a pairar no fog que cobre Tiananmen.