Muamar Khadafi, aos 68 anos, promete resistir até o fim em Trípoli e em Sirte – sua terra natal – onde, em julho de 2009, como único convidado de honra da Cúpula da União Africana, o então presidente Lula levantou da cadeira ao seu lado e iniciou o discurso de abertura chamando-o de meu amigo, meu irmão e líder. Os presidentes da Líbia e do Brasil tornaram a encontrar-se outras três vezes. Numa delas, durante a Cúpula América do Sul-África na Isla Margarita, Venezuela, o anfitrião Hugo Chávez fez-lhe o maior elogio de seu repertório: o que é para nós Bolívar, é Muamar Khadafi para o povo líbio, o que animou  o ditador africano a propor uma aliança militar entre os dois continentes nos moldes da OTAN. Hoje o verde do Islã é a cor da Líbia, mas em 1969, quando Kadhafi tomou o poder, a bandeira nacional que agora volta a tremular nas mãos dos revolucionários era tricolor (vermelha, preta e verde com o símbolo islâmico da lua crescente no meio).  Um ano depois ele lançou o Livro Verde, um opúsculo com menos de trinta páginas que encantou adeptos do terceiro mundo, com três partes: a solução do problema da democracia; a solução do problema econômico (o socialismo) e a base social. Adotado compulsoriamente nas escolas, misturava conceitos políticos e domésticos: o Parlamento é a ausência do povo; o sistema de partidos faz abortar a democracia; os Congressos Populares são o único meio de democracia; os pretos prevalecerão no mundo; os empregados domésticos são uma forma de escravidão e a casa é para ser cuidada pelos seus residentes.
Na atual revolução líbia, há muito, ainda, por entender e explicar, inclusive em relação às fontes de financiamento da oposição que até a um mês atrás era absolutamente inexistente no país ou fora dele. Também não está claro quem ganha e quem perde com a queda que a cada dia parece mais iminente do governo. Conceitos como sociedade civil, partidos políticos, movimento sindical, opinião pública, direitos humanos são desconhecidos do povo líbio, não havendo, portanto, quem assuma de maneira consistente um governo de transição. Um golpe militar é impossível, pois o exército foi enfraquecido por Khadafi exatamente pára evitá-lo. A segurança do Irmão Líder é feita por milícias de absoluta confiança, formada por gente de sua tribo, a Qathathfa, e por mercenários africanos contratados aos milhares nos últimos anos. A Líbia é, na verdade, uma sociedade tribal, com 6,5 milhões de habitantes distribuídos em 140 tribos, mais cerca de 500 mil trabalhadores estrangeiros sem qualquer direito de cidadania.
Uma das teorias que explicam a revolução diz que afinal os demais chefes tribais se cansaram de décadas de submissão e humilhação, embora uma união entre eles e com os tradicionalmente esfacelados grupos de oposição (divididos em dezenas de micro-organizações) seja uma clara improbabilidade. Contudo, Akram al-Warfali da tribo Wafalla, a mais numerosa do país com um milhão de componentes, declarou: dissemos ao irmão Khadafi que ele já não é nosso irmão e deve abandonar o país. E na fronteira com a Tunísia povos berberes, cujos ancestrais povoaram a Líbia há milhares de anos, aderiram à revolução exatamente para recuperarem sua identidade. Numa tentativa de dar uma face à oposição, as tropas de ocupação de Bengazi, a segunda cidade mais populosa, anunciaram a formação de um Conselho tentando evitar que cada chefe de tribo simplesmente se contente em ocupar o seu próprio território.
Há os que tentam explicar a revolução como um movimento de geração quase espontânea, não premeditado seja de fora ou de dentro do país, o que também é difícil de acreditar. Em Bengazi um punhado de moradores protestaram contra a prisão de ativistas locais. Khadafi prometeu libertá-los, mas nada fez e, como as reclamações prosseguissem, ordenou um ataque aos manifestantes que deixou centenas de mortos, alimentando o ódio que originou a formação de milícias armadas até os dentes e subitamente poderosas. O presidente líbio acusa, sem qualquer evidência, a Al Qaeda de querer desestabilizá-lo. Há os que culpam os Estados Unidos por um suposto Plano Novo Oriente, idéia que acaba de ser fortalecida pelas declarações de Hillary Clinton oferecendo qualquer tipo de assistência aos rebeldes do oriente líbio para que avancem em direção a Trípoli.
No horizonte de uma Líbia sem Khadafi não se pensa em qualquer solução democrática e sim na hipótese de que surjam dois países (ou três se ele permanecer em Trípoli), com a divisão entre leste e oeste, gerando disputas de difícil solução pela fixação de fronteiras, pois os campos de petróleo situam-se entre as duas regiões. O país tem sido uma vasta barreira de contenção dos migrantes da África subsaariana que, com uma mudança no regime passariam a pressionar a Itália e os países mediterrâneos. Os líbios correram aos bancos para receber os 500 dinares (R$ 640,00) dados pelo governo, mas nem por isso voltaram a apoiá-lo. No fundo, alegram-se com a possibilidade de não mais serem obrigados a assistir na TV as intermináveis arengas do Irmão Líder. A vida pode não ter mais liberdade, mas talvez se torne menos chata.     

 

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional