A última novidade de Evo Morales e seu governo ultranacionalista tem como vítima, uma vez mais, o vizinho mais débil, aquele que não reclama de nada e aceita tudo: o Brasil de Lula. Tranqüilo com a reeleição do ex-metalúrgico brasileiro e certo de que faça o que fizer será desculpado, decidiu expulsar os colonos plantadores de soja e pequenos agricultores que, de tantos anos que lá estão, já se consideram bolivianos com suas mulheres e filhos nascidos na terra que exploram para ganhar o sustento. Enquanto isso, George Bush reabriu a temporada de caça livre aos mexicanos e latino-americanos que buscam emprego e melhores condições de vida nos Estados Unidos, aprovando a construção de um novo muro na fronteira com o México e ignorando o fato de que na barreira já existente, entre San Diego e Tijuana, por onde entra um mexicano (ou guatemalteco, peruano, brasileiro,…) por minuto, tem morrido em média dez vezes mais gente do que no velho e maldito Muro de Berlim. É verdade que o anúncio presidencial teve forte motivação eleitoral e que apesar disso os republicanos perderam o domínio sobre o Congresso norte-americano, mas a rejeição aos imigrantes latinos vem crescendo nos EUA sendo contraposta apenas pela avidez dos comerciantes que não querem abrir mão da mão-de-obra barata dos “indocumentados”.
O fenômeno dos migrantes é um dos grandes desafios do mundo atual. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a População, atualmente existem 191 milhões de pessoas vivendo fora dos países de sua nacionalidade, o dobro de há cinqüenta anos atrás. Caso todos morassem num só lugar, formariam o quinto país em população do mundo, atrás apenas de China, Índia, Estados Unidos e Indonésia; quase igual ao Brasil. Cerca de metade dos migrantes está concentrada em dez países com o maior número nos EUA que abriga 21% deles, três vezes mais que a Rússia que vem em segundo, seguida por Alemanha, Ucrânia, França, Arábia Saudita, Canadá, Índia, Reino Unido e Espanha. Cada vez mais são as mulheres que trocam de país, tradicionalmente para acompanhar os maridos que iam em busca de trabalho ou para proteger a família, mas ultimamente também por iniciativa própria. Dos cerca de 13 milhões de refugiados, reconhecidos como tal, espalhados pelo mundo, seis de cada dez são mulheres. Nada menos que 70% dos migrantes brasileiros que se dirigem à Espanha e à Itália pertencem ao sexo feminino.
Há uma guerra, declarada ou não, entre os direitos dos imigrantes no local onde se instalam e a soberania e os interesses próprios do país receptor. De um lado, estão os que querem ser aceitos, manifestar suas tradições culturais, ser iguais aos nacionais, ter os mesmos direitos de proteção social e de participação política; de outro figuram os que defendem a segurança interna e suas próprias “maneiras de ser” (as características distintivas da pátria e de seu povo), não querem redistribuir as terras e pedem proteção para a força de trabalho nativa. O sentimento de xenofobia, crescente nos países receptores, ganhou força depois do 11 de setembro e a desculpa do terrorismo internacional tem justificado movimentos de nacionalismo exacerbado que geram cada vez mais conflitos. O ultra-direitista Jean Marie Le Pen continua ganhando adeptos na França, onde as últimas pesquisas indicam que 1/3 dos eleitores nele votarão. Seu adversário é Sarkozi cuja plataforma política se baseia na exclusão dos estrangeiros e que em 2002 conseguir aprovar uma lei que impede a prestação de serviços médicos a quem não resida regularmente por lá há pelo menos três meses. A Federação Internacional dos Direitos Humanos protestou dizendo que a assistência médica tem que ser prestada a todos, legais e ilegais. O argumento de que os estrangeiros constituem um peso que desequilibra os serviços de saúde e de educação tem sido refutado por estudos que demonstram uma utilização menor por parte dos hispânicos e de outras nacionalidades em relação aos nacionais nos EUA (8% contra 10,5% segundo trabalho de Mohanty em 2005 sobre gastos de imigrantes), mas continua sendo brandido como uma arma pelos nacionalistas mais conservadores.
Acima das posições ideológicas figuram as muitas razões econômicas. As remessas dos migrantes para a família que fica no país de origem forma uma inusitada poupança que em geral é utilizada criteriosamente para abrir pequenos negócios. Em países como Jamaica e El Salvador as remessas chegam a representar 36% de todo o dinheiro vindo do exterior, enquanto no México e no vizinho Equador essa rubrica só perde para o petróleo como fonte de divisas. Contudo, paralelamente se expande o tráfico humano e de drogas. Os coyotes que vendem o ingresso nos EUA de pessoas sem documentos estão no mesmo canal que favorece o vai-e-vem de cocaína e de armas.
A demógrafa brasileira Elza Berquó lembra que as discussões internacionais em torno do tema se referem praticamente só aos migrantes documentados, em situação regular, ignorando os não-documentados, cuja luta pela sobrevivência os expõe a toda sorte de vulnerabilidades e explorações, mesmo quando são obrigados a se deslocar na tentativa de fuga de perseguições políticas, étnicas ou religiosas. A eles são reservados os empregos que, em inglês são identificados como os quadro D: sujos (dirty), difíceis, humilhantes (demeaning) e perigosos (dangerous), além de serem degradantes porque sub-remunerados. Costumam incluir limpeza das ruas, coleta de lixo, trabalho sexual, funções menos nobres na construção civil, no comércio de alimentos, na mineração, na indústria, mas a eles se juntam os doutores e todo e qualquer profissional de alta qualificação, num movimento de fuga de cérebros que ocasiona prejuízos inestimáveis às nações que, num eufemismo ao contrário usado no mercado internacional, são chamados de “doadoras”.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional
Autor dos livros Guerra en los Andes;
ZIM: uma aventura no sul da África.