O elo mais frágil da luta entre o terror e a civilização cedeu de novo. Espremido desde 1948 entre a Índia, o Afeganistão e o Irã, com uma ponta de contato com a China, o Paquistão nunca conseguiu ser uma verdadeira nação e hoje paga seus pecados por ter se tornado uma ponta de lança da Guerra contra o Terror de George Bush, de quem o general Pervez Musharraf é o principal aliado na região. As riquezas do país – sejam terras, bens materiais ou a poderosa ajuda norte-americana – se esvaem nas mãos sempre ávidas dos clãs familiares dominantes e dos militares que fazem a política e lutam sem trégua entre si. Benazir tornou-se a líder de um dos mais poderosos clãs, dos Bhuttos, depois que seu pai (Zulfikar Ali Bhutto, presidente e 1º Ministro entre 1970 e 1977) foi deposto e logo enforcado pelo regime golpista do general Zia-ul-Hak. À frente do PPP, o Partido Popular do Paquistão, ela governou o país por quase 5 anos (foi duas vezes 1ª. Ministra) como a primeira mulher a ter o poder numa nação muçulmana, mas sob fortes acusações de corrupção, que incluíram seu marido Ali Zardari, teve de fugir para um auto-exílio em Dubai.
Após oito anos de governo militar, com o prestígio ainda intacto, Benazir retornou no último dia 18, num ato de teimosia e irresponsabilidade que resultou em 141 mortes e em 500 feridos. O governo e o general Musharraf pessoalmente avisaram-na do perigo que corria e insistiram em que deveria pelo menos adiar por algumas semanas seu retorno, mas ela agiu como a colombiana Ingrid Betancourt e seguiu em frente, de olho nas eleições prometidas para janeiro próximo. Afinal, nem três meses se passaram do ataque do exército à Mesquita Vermelha em Islamabad que deixou 240 militantes radicais muçulmanos mortos e desde ai a guerra e os atentados não mais cessaram nas montanhas e cidades junto ao Afeganistão.
Recebida por milhares de correligionários em Karachi, a segunda maior cidade do Paquistão com 12,3 milhões de habitantes às margens do Mar da Arábia, Benazir instalou-se numa plataforma sobre um caminhão (uma espécie de trio elétrico, com proteção parcial à prova de bala) e vagarosamente, por mais de dez horas, comandou a caravana da volta à pátria. Tudo parecia favorecê-la: o dia nublado e uma temperatura de 280 (nessa época é comum o calor chegar aos 350), seis carros de proteção policial ao lado mais dois na frente e dois atrás, além de 8500 seguranças. O povo em seu entusiasmo procurava abraçar o veículo de Benazir e com a chegada da noite a confusão aumentou. No bairro central de Karsaz, perto do estádio nacional de críquete e do luxuoso Taj Mahal Hotel, inexplicavelmente as luzes da larga avenida Shahrah-e-Faisal se apagaram e na escuridão momentânea o suicida conseguiu infiltrar-se, burlando a rígida segurança. Caminhando ao lado esquerdo do caminhão ele primeiro jogou uma granada de mão e em seguida puxou os cordéis dos 20 kg de dinamite que levava amarrados ao corpo para causar a explosão que lhe arrancou a cabeça e tirou a vida da multidão à sua volta. O efeito foi devastador e interrompeu a marcha da caravana que já estava próxima do seu destino, o belíssimo mausoléu de Quaid-i-Azam, uma homenagem ao Pai da Pátria, o herói nacional Muhammad Al-Jennah, falecido em 1948 após conduzir o país à separação da Índia e à independência.
Benazir, que descera para a parte interna do veículo a fim de trocar os sapatos e discutir detalhes de seus discursos com assessores, uma vez mais escapou ilesa. Em seguida ela declarou que não irá embora do Paquistão e acusou não a Baitullah Mehsud, o comandante pashtun da guerrilha Talibã que pedira uma Jihad contra ela e mantém 260 seqüestrados na província do Waziristão (ele negou ter qualquer responsabilidade no ataque), e sim a Ejaz Shah, chefe do Departamento de Inteligência do serviço secreto paquistanês. Shah pertence ao grupo extremista que liquidou o pai de Benazir, tem velhas ligações com radicais islâmicos e não é difícil contratar suicidas com algum dos senhores da guerra, talibãs ou não, que os treinam nas mesquitas espalhadas pelas redondezas.
O que virá agora? O projeto político dominante é de manutenção das estruturas que detém o poder, num arranjo com Musharraf sem farda na presidência e Benazir do clã Bhutto de volta como 1ª. Ministra, graças à provável vitória do PPP nas eleições se de fato ocorrerem. Caso ela repita o que fez no passado, nem democracia nem direitos para as mulheres ou o combate à corrupção terão espaço no Paquistão. Ela apoiou os Talebans quando estes tomaram o Afeganistão, mas agora se declara uma militante de um Islã moderno, pacífico, pró-Estados Unidos. O povo, sem alternativa, pagará para ver e seguirá rezando para que o Paquistão dê certo.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, Analista internacional