A Organização Mundial da Saúde está colocando todas suas fichas no pano verde e rude da fortuna com uma aposta: Universal Health Coverage – UHC, que em português pode ser traduzida como Cobertura Populacional em Saúde – CPS, pela qual cada pessoa deverá ter acesso a cuidados de saúde sem enfrentar dificuldades financeiras para custeá-los. Dessa vez sim, é para todos. A promessa já foi feita em Alma-Ata, a capital do Cazaquistão, em 1978. Então, representantes de 134 países e 64 organizações internacionais reconheceram o acesso universal a cuidados à saúde como um direito humano fundamental, comprometendo os governos nacionais a assumirem a Atenção Primária à Saúde –APS – e a Promoção da Saúde para o conjunto da população como uma obrigação a ser financiada com recursos públicos. O consenso de Alma-Ata, tão brilhantemente concebido, logo perdeu a unanimidade inicial e passou a enfrentar pesados obstáculos, claudicando perante a ofensiva avassaladora do neoliberalismo favorecida pelos longos mandatos de Ronald Reagan na presidência dos Estados Unidos (1981-1989) e de Margareth Thatcher como 1ª. Ministra do Reino Unido (1979–1993). Numa mudança radical de atitude, ao invés da viabilização da APS com recursos públicos permitiu-se que as forças de mercado passassem a ditar as regras. Veio, então, a onda da privatização, a liberalização do comércio de medicamentos, o estímulo à venda direta de serviços e o incentivo ao mercado privado com a transformação de pacientes em consumidores, alastrando-se pelo setor saúde mundo afora uma febre de precoce descentralização, esta com o apoio de forças progressistas interessadas em fortalecer o nível local e a participação comunitária. Alertas de que os mais pobres não poderiam pagar pelos cuidados de que necessitassem foram ignorados. Seguiram-se trinta anos de políticas neoliberais causando imensos prejuízos especialmente às áreas de saúde e de educação. O Sistema Único de Saúde – SUS –, aprovado com base na Constituição brasileira em 1988, inevitavelmente sofreu os efeitos dessa onda.
Afinal, nos últimos suspiros da primeira década dos anos 2000 a maré desfavorável foi revertida, dando novo alento às políticas de caráter social, do que se aproveitou a Organização Mundial da Saúde para apresentar a UHC como o mais poderoso instrumento de saúde pública que é possível oferecer. No entanto, UHC não é Alma-Ata. Nem poderia ser, pois os tempos são outros, o contexto é distinto. O exame dos estudos e dos textos mais recentes sobre o tema revela diferenças e perspectivas preocupantes, inclusive para o Brasil em relação ao seu sistema de saúde. Desde logo, ficou claro que os dois mais tradicionais sistemas de atenção à população – o que é financiado por impostos como no Sistema Nacional de Saúde inglês ou no SUS e o que é baseado em taxas sobre a folha de salários, como na Alemanha (e na previdência social brasileira do século XX) – já não são úteis para decisão política.
Os teóricos da UHC dizem que esta não advoga qualquer sistema de organização de sistemas de saúde em particular, assim como não tem preferência entre os esquemas tradicionais ou inovadores de financiamento, desde que assegurem os recursos necessários. Uma vez que a diretora da Organização é chinesa, é possível que tenha recordado a famosa e pragmática afirmativa de Deng Xiaoping de que não importa a cor do gato, desde que cace o rato. Igualmente não faz parte da discussão global a atual ofensiva de governos conservadores europeus ─ por exemplo no Reino Unido, Espanha, Portugal ─ sobre os remanescentes regimes públicos de estruturação universal dos cuidados à saúde.
A guerra, em relação ao financiamento, está concentrada no combate aos pagamentos diretos, do bolso do contribuinte, pois estes podem obrigar a gastos ditos catastróficos, relacionados a doenças e acidentes de alta gravidade e custos muito elevados, com potencial para conduzir o indivíduo e a família ao empobrecimento. No intenso esforço que vem sendo feito para consolidar sistemas correspondentes à filosofia predominante da UHC, destaca-se o empenho com que vem atuando o Banco Mundial, exatamente a instituição responsável pela implantação dos princípios do neoliberallismo no mundo. Seus ideólogos chegaram a escrever, com notório exagero, que estamos diante de uma terceira revolução da saúde. Depois da demográfica e da epidemiológica, teria chegado a hora e a vez de definir como a saúde é financiada e como os sistemas de saúde são organizados.
Uma vez que a proposta da UHC surge em aberto, aceitando uma ampla variedade de soluções com o foco no aumento da população protegida, a iniciativa privada como de hábito se apresta a ocupar os espaços disponíveis.
No jogo que agora começa a se intensificar, as forças de mercado podem ser novamente as vencedoras.
As análises internacionais sobre UHC têm virtualmente ignorado o Sistema Único de Saúde brasileiro. Uma das razões para esta colocação em segundo plano do caso brasileiro é a opção pela retirada de apoio aos sistemas clássicos de estruturação dos sistemas nacionais de saúde. O SUS está ficando fora de moda. Isolado, corre o risco de perenizar e agravar suas dificuldades que têm causas internas conhecidas: a má vontade e o boicote das forças neoliberais logo após a sua instituição; o desfinanciamento crônico não corrigido nem quando o Brasil se beneficiou, nos últimos dez anos, do período de boom financeiro internacional; a falta de apoio governamental e a não correção dos problemas criados pela descentralização precoce do sistema. Mais recentemente, embora todo o destaque trazido pelas manifestações de rua de junho deste ano, o enfrentamento e a resolução dos verdadeiros problemas de fundo que afetaram e continuam afetando o SUS foram uma vez mais diminuídos e deixados para depois por iniciativas diversionistas como a Lei do Ato Médico e o programa Mais Médicos cujos efeitos mais notórios foram o esgotamento das energias dos litigantes (governo e categoria médica) e o fornecimento de combustível para a campanha eleitoral vindoura. A estratégia Universal Health Coverage/Cobertura Populacional em Saúde representa um caminho a ser, sem dúvida, percorrido, mas sem abrir mão das conquistas acumuladas pelos sistemas públicos nacionais e em particular pelo Brasil no último quarto de século.
Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional. Doutor em Saúde Pública