A Bolívia dos indígenas, do Altiplano inca, dos collas, dos minérios, da exclusão e da pobreza, tentou com Evo e, novamente, não deu sorte. A Bolívia dos criollos, da planície, dos cambas, da soja e do gás, da classe média, está nas mãos dos quatro prefeitos da Meia-Lua e não sabe se dará um salto para a frente ou para trás. Da última vez em que o confronto se armou, nas eleições de 2005, os cambas se amedrontaram com a retórica incendiária do MAS (Movimiento Al Socialismo) e deram parte de seus votos a Evo Morales Aymá, ajudando a elegê-lo na esperança de que trouxesse paz a uma só Bolívia. Por que as coisas estão dando errado e o país está à beira do conflito?
Nem Evo Morales nem Álvaro García Linera – o enrustido vice-presidente que exerce a presidência do Congresso e o conduziu à aprovação da nova Constituição em um quartel – são Estadistas no sentido real do termo: Homens de Estado que exercem a liderança sem limitações partidárias. Mostraram-se incapazes de unir a nação e governam com idéias e práticas que não são compreendidas. Para o La Razón de La Paz o país perdeu a bússola e se encaminha a mais violência, num quadro em que as forças da ordem se alinham politicamente, a Assembléia Constituinte se reúne sem a oposição, o diálogo está desgastado, a justiça se parcializou e nas ruas vigora a lei do mais forte.
Num ambiente que se radicaliza a cada dia, os pacifistas tornam-se ingênuos e ao saírem às ruas de La Paz com suas velas e bandeiras brancas são surrados pelos masistas (afiliados do MAS que em duas ocasiões, nas praças Murillo e Abaroa, os dispersaram com cassetetes na última semana). Nem os cães escapam. Os Ponchos Rojos, tidos como tropa popular de choque de Evo Morales, num comício em Achacachi, sua cidade de origem, penduraram com cordas a dois animais e, insensíveis aos seus ganidos de dor,  espancaram-nos e em seguida os degolaram aos poucos, diante da massa atônita, enquanto gritavam: “Assim vão sofrer os cachorros da Meia-Lua”.  Em Sucre, os protestos populares contra a Assembléia Constituinte foram reprimidos pela Polícia e pelo Exército, num embate desigual que resultou em três mortos e centenas de feridos. Já a violenta Unión Juvenil Cruceñista se prepara para romper à bala, se preciso for, o cerco à cidade armado por militantes pró-governo.
Objetivamente, o entendimento é possível. Nenhum dos dois lados deseja a secessão e ao contrário do que tem dito Evo Morales, a autonomia decretada unilateralmente pelos Departamentos de Santa Cruz, Tarija, Pando e Beni (a Meia-Lua) e em preparação em Cochabamba, não é um estatuto separatista nem um processo de balcanização (nos Bálcãs, com o fim da ex-Iugoslávia surgiram diversos novos países). Os atuais prefeitos transformam-se em governadores, criam-se impostos locais e Assembléias Legislativas com deputados departamentais (estaduais) eleitos por voto direto, instala-se uma justiça própria de cada Departamento que terá seu sistema eleitoral, além de políticas locais de saúde, educação e esportes. As principais discordâncias se referem à constituição de polícias, controle da distribuição e uso da terra, políticas de gestão hidrocarbonífera, mineral e florestal, além de regulação da migração por parte das unidades autônomas. Algo que está mais para o que é um Estado brasileiro do que a quase independência de que goza a província canadense do Quebéc. O governo central argumenta que a Constituyente Masista, como é conhecida, contempla o direito à autonomia. Contudo a oposição, que não a reconhece, diz que não é explícita e aumenta propositadamente a confusão, pois se refere a autonomias “departamentais, indígenas, provinciais e municipais”, uma salada de inviável combinação. Enfim, nada que uma boa conversa entre os seis maiores envolvidos – Evo Morales e os “prefeitos” (ou governadores) Rubén Costas de Sta. Cruz, Mario Cossio de Tarija, Leopoldo Fernández de Pando, Ernesto Suárez de Beni e Manfred Reyes Villa de Cochabamba –, transformados em Estadistas pelos reveses recentes, não possa resolver. Por via das dúvidas, argentinos, chilenos, peruanos, paraguaios e brasileiros, nas fronteiras, preparam-se para o êxodo de bolivianos se a briga começar.


Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional.
Autor do livro Guerra en los Andes (Ed. Abya-Yala, Quito)