Duas semanas depois dos confrontos entre uzbeques e quirguizes que fizeram cerca de 2 mil vítimas na cidade de Osh, 70% dos eleitores foram às urnas neste último domingo de junho e nove em cada dez votaram sim aprovando a nova Constituição do Quirguistão que institui uma democracia parlamentar e referenda o governo provisório de Roza Otunbaeva. Dentre as grandes novidades numa terra acostumada a invasões estrangeiras e a ditaduras desde que surgiu no mapa seis séculos antes de Cristo, está a de que nenhum partido poderá ter mais de 50 cadeiras num total de 90 no Congresso. Roza, que acaba de completar 60 anos, segue o padrão dos políticos das cinco ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, sendo originária do Partido Comunista numa carreira iniciada na década de oitenta.  Ela liderou a Revolução das Tulipas que depôs o presidente Askar Akayev em 2005 e elegeu Kurmambek Bakiyev, derrubado este ano sob acusações de corrupção, nepotismo e responsabilidade pelo alto custo de vida. O Quirguistão, com apenas 200 mil km2 e 5,5 milhões de habitantes (69% quirguizes, 14,5% uzbeques, 9% russos), é um dos dois únicos países do mundo duplamente isolados – o outro é Liechtenstein -, ou seja, inteiramente cercado por outros países também sem acesso ao mar. Eleições presidenciais foram adiadas para outubro de 2011, dando tempo para Roza estruturar um governo minimamente estável (apoiado pela Rússia) e capaz de enfrentar os ataques dos seguidores de Bakiyev que, asilado em Belarus, estaria aliado a grupos de muhajedins talibans. Ela pretende manter a colaboração com o ocidente. 
Depois que Lênin tomou o poder em 1919, a ex-URSS custou a concluir que a única maneira de dominar as cinco repúblicas da Ásia Central seria submetê-las a um processo de sovietização total, dando-lhes uma única nacionalidade: a russa. Em 1936 completou-se o processo de submissão do Turcomenistão, Uzbequistão, Tajiquistão, Cazaquistão e por último do Quirguistão que se prolongou até a queda do Muro de Berlim em 1991 quando todos recuperaram suas independências com as antigas nacionalidades territorialmente misturadas mas, numa prova do fracasso da estratégia comunista, etnicamente intactas. Só não conseguiram livrar-se da imensa influência política e econômica russa que até hoje costuma manifestar-se pela violência, como há cinco anos quando o presidente uzbeque, Islam Karimov (na presidência desde 1995), um fiel aliado de Vladimir Putin, ordenou que suas Forças de Segurança abrissem fogo massacrando 5 mil opositores que marchavam pacificamente nas ruas de Andijan. Era o temor de enfrentar a Revolução Colorida que triunfara na Sérvia, na Ucrânia e no Quirguistão.
O velho Partido Comunista conseguiu manter muito de sua influência na região sem mudar, na essência, suas práticas. Nursultan Nazarbayev segue como o primeiro e único presidente do Casaquistão (desde 1989) e Samarpurat Niyazov que tinha um mandato para toda a vida no Turcomenistão só deixou o poder ao falecer em dezembro de 2006. Seu substituto, Gorbanguly Berdimuhamedow, está no comando desde então.  À exceção do Cazaquistão e do Turcomenistão que, às margens do Mar Cáspio, possuem imensas reservas de gás e petróleo, os demais estão entre as mais pobres nações do mundo e nos últimos lugares quando a medida é o Índice de Percepção da Corrupção. Em parte pagam o preço da vizinhança em uma região que inclui territórios do Afeganistão, Rússia, Irã, Mongólia, Paquistão, Índia e China. Das dez rotas mais comuns de tráfico de ópio e de heroína a partir do Afeganistão, cinco cruzam por Osh, em geral rumo a Moscou. As estradas de Khujand costeando o rio Sir Daria e de Khorog no Tajiquistão para Osh, que é a segunda cidade quirguiz e terra natal de Roza Otunbaeva, concentram o grosso do tráfico e não por acaso estão na origem das batalhas deste mês quando as diferenças raciais entre quirguizes e uzbeques foram exploradas por políticos que costumam ser os mesmos que controlam o tráfico.
A Ásia Central mudou depois do 11 de setembro de 2001, com uma crescente presença norte-americana, cuja base no Quirguistão (os russos têm ao lado a sua base e projetam construir outra) serve de apoio a vôos de abastecimento e agressão ao Afeganistão. Em janeiro, numa outra rota da seda pelo novo túnel de Anzab, foi inaugurado um oleoduto ligando o Irã ao Mar Cáspio e aos campos de gás do Turcomenistão, país que ainda ganhou um gasoduto que vai até a China e uma ponte de ligação com as planícies afegãs, esta construída pelos Estados Unidos. Mas, nem só de economia e de política ai se vive. Os russos sentem um outro medo, profundamente arraigado em seus corações desde o domínio do país por Gengis Khan no século XIII: o de serem novamente submetidos à fé muçulmana, já então professada pelos mongóis aos quais associam suas desgraças de então. Discordâncias ancestrais não acabam de repente. Ao contrário, alimentam-se e se fortalecem com as novidades, prometendo manter as tensões à flor da pele nesse canto do mundo.          

 

Vitor Gomes Pinto
Escritor, Analista internacional