Junto às neves eternas que cobrem de beleza o vulcão chileno Osorno, às margens das águas azuis do lago Esmeralda próximo a Puerto Montt, concentram-se muitos dos mapuches, um povo ancestral que quer uma nação só para si no sul da América. Pouco mais de 90 mil na Argentina, os mapuches beiram a casa do milhão de indivíduos no Chile (16,5 milhões de habitantes no total do país), dos quais cerca de 60% vivem marginalizados em Santiago e nas periferias das principais cidades.
A face mais dura de Michelle Bachelet, a presidente socialista do Chile, começa a aparecer: longe da feminista (que não é) ou da médica que já foi Ministra da Saúde e mais próxima à personalidade dura e belicosa de quando atuou como Ministra da Defesa. Há poucos dias demonstrou claro descontentamento com o péssimo comportamento de Hugo Chávez na cúpula de Santiago, cobrando-o pelos altos preços do petróleo e negando-lhe ingerência nas conversações com a Bolívia que deseja uma saída ao mar pelo território chileno. Dirigindo um país que é um líder regional inconteste quando se trata de índices de desenvolvimento econômico e social, Bachelet enfrenta crescentes resistências internas e vê sua popularidade cair mesmo entre as mulheres. Ela tenta recuperar-se, mas sua inabilidade em lidar com a minoria mapuche ameaça contaminar o restante de seu governo. Na prisão de Ancol, a 600 km ao sul da capital, cinco líderes dessa etnia estão em uma rígida greve de fome desde o dia 10 de outubro. Consideram-se presos políticos, dizem que seus processos são arbitrários e injustos, pedindo a cessação das freqüentes invasões das comunidades indígenas pelo exército e pela polícia.
“Somos a Nação Mapuche, queremos manter nossa identidade cultural, étnica, religiosa e moral” repetem à exaustão líderes como Calfaruyén Huenufil que comandou o movimento em comunidades da capital e Aucán Huilcamán que presidiu o “Conselho de Todas as Terras” e chegou a ser chamado de Comandante Aucán para firmar as semelhanças com a revolta de Chiapas no México onde o Comandante Marcos ganhou fama. É a proposta de formar um Estado Mapuche que assusta as autoridades, as quais insistem em que o Chile é um só e deve ser regido por uma lei única. Numa tentativa de superar a danosa legislação imposta pela ditadura de Pinochet, o ex-presidente Aylwin aprovou uma lei indígena mais democrática e criou o Conselho de Administração Indígena, Conadi que até hoje reúne representantes de todos os interessados. Mas esses avanços foram água abaixo quando, em 1998, o governo de Eduardo Frei autorizou o megaprojeto da hidrelétrica de Ralco, inundando milhares de hectares e obrigando a retirada contra a vontade dos mapuches, nome que significa “homem da terra”. .
O governo anterior, de Ricardo Lagos, criou uma “Comissão da Verdade e Novo Tratamento para os Povos Indígenas” e obteve 80 milhões de dólares do BID aos quais acrescentou 53 milhões do próprio orçamento para promover o acesso à terra e a tecnologias modernas tanto para os mapuches quanto para os aymarás e outras minorias, como os rapanuis da Ilha de Páscoa. A idéia era formar uma mesa de diálogo étnico, método que deu bons resultados no Canadá onde hoje há até um Ministério para Assuntos Indígenas. No entanto, a tática de distribuição de lotes familiares chocou-se com a prática milenar de cultivo comunitário, coletivo das terras e, ao invés de resolver o problema levou os mapuches a se organizarem na defesa de seus direitos e os proprietários de terras, cada vez mais convencidos de que a situação é séria, a contratarem milícias privadas com mercenários pagos para acabar com as incursões dos índios. Bachelet piorou a situação ao encarcerar os líderes indígenas com base na legislação antiterrorista dos tempos de Pinochet e que até hoje não foi revogada.
O caso das comunidades originais na América Latina onde somam 23 milhões de pessoas e nos demais continentes é tema central de preocupação na ONU cujo Grupo de Minorias da Comissão de Direitos Humanos afirma que num mundo cada vez mais intercomunicado é preciso respeitar a diversidade dos que o habitam. À margem da estrutura capitalista internacional os vários povos autóctones tentam formar alguma base comum. Os mapuches possuem ligações com os bascos espanhóis e com os camponeses de Chiapas, além de contatos com o movimento dos Sem Terra do Brasil e com os rebeldes das Farc colombianas. A esquerda organizada participa ativamente dos protestos e tenta uma bandeira de luta comum, o que nem sempre é aceito pelas lideranças indígenas.
Em recente viagem à Suíça, Bachelet declarou que não existem presos políticos no Chile e que os mapuches detidos são pessoas que buscaram soluções de maneira não democrática nem pacífica, referindo-se a incêndios sem vítimas por eles causados em prédios públicos. O professor Juan Guzmán, Decano da Faculdade de Direito (Universidade Central de Santiago) declarou que a presidente se equivoca, pois a luta dos mapuches é essencialmente política. Ele visitou cárceres repletos deles em quatro cidades, descrevendo-os como inumanos. No momento, as famílias de Patrícia Troncoso, Jaime Moriles, José Huenchunao, Héctor Llaitul e Juan Millanen, os mapuches que já perderam cerca de 15 quilos cada um, não saem da frente da prisão de Ancol para evitar que o governo, como fez em idêntica situação no ano passado, transfira-os para a cadeia de Temuco e lá os obrigue a interromper a greve de fome. Querem que se respeitem suas opções, mesmo que essas os levem à morte. Michelle Bachelet acha que os mapuches são inimigos, quando na verdade são apenas chilenos de uma raça distinta da sua e que devem ser respeitados exatamente por serem diferentes.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional, Autor do livro “Guerra en los Andes”