Quando a Bolívia aguardava que o seu presidente marcasse a data de um referendo nacional que já estava previsto para aprovar ou não o texto da nova Constituição, é surpreendida pelo Senado que por unanimidade resolveu aprovar outro referendo, para realizar-se em no máximo 90 dias, a fim de decidir se o presidente, o vice e os “prefeitos” dos nove Departamentos em que se divide o país devem ter seus mandatos revogados, o que acontecerá caso obtenham menos votos do que na ocasião em que foram eleitos há pouco mais de dois anos atrás. A proposta original é do presidente Evo Morales, mas agora a aprovação foi impulsionada pela oposição num momento em que se considera fortalecida pela esmagadora vitória obtida em outro referendo, o que consagrou a autonomia de Santa Cruz. Cinco dos nove Departamentos têm seus próprios referendos autonômicos previstos – Pando, Beni, Tarija, Cochabamba e Chuquisaca – o que é considerado ilegal pelo governo central, mas agora é possível que esse conflituoso processo seja interrompido, aguardando para saber se as autoridades permanecem ou se terão de ser substituídas (em novas eleições).
Ninguém, incluindo o Executivo nacional, tem autoridade suficiente para comandar de fato o país. As tentativas de diálogo não avançam e o vice-presidente Álvaro García Linera acaba de desacreditar a Igreja, tida como a última instituição suficientemente neutra para fazer a mediação entre o governo central e seus opositores. Manifestantes anti-Evo são impedidos violentamente por militantes do MAS (Movimiento Al Socialismo) de expressar-se em La Paz e, enquanto isso, em Sucre, a capital constitucional, os ministros da Defesa e da Justiça são atacados por opositores na porta do Tribunal de Justiça, onde estavam para assistir à posse do seu novo presidente.
A Nação Camba, como se autodenominam os nascidos em Santa Cruz, aprovou com 86% dos votos válidos seu direito a uma autonomia que na prática significa atingir o status de um estado brasileiro, com orçamento, bandeira e hino próprios, eleição de governador e de uma câmara de deputados. O estatuto autonômico contém exageros, como os direitos a uma cidadania crucenha e a concessão de asilo, mas esses são pontos contornáveis numa mesa de discussão quando os ânimos arrefecerem. O verdadeiro xis da questão é a divisão de tributos, definindo os percentuais das riquezas de Santa Cruz que lá permanecem ou vão para La Paz. No entanto, Evo Morales fez questão de persistir no clima de confronto, declarando que considerava esse referendo um fracasso e que na verdade tinha vencido, pois o somatório dos que votaram “Não” com os 39% que se abstiveram dariam maioria aos que são contrários à autonomia. É um sofisma e uma criancice, pois a maioria dos que não votaram foi impedida de fazê-lo pelos agressivos militantes masistas; não se sabe quantos deles diriam “Não” e, afinal, se tal critério fosse válido, Evo Morales não teria sido eleito em 2005, quando recebeu 54% dos sufrágios de todo o país, com uma abstenção de 15,5%.
No fundo, não existe o desejo da meia-lua (região constituída por Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija) ou de Cochabamba de uma cisão, de romper a unidade nacional. Mesmo nos momentos de comemoração de triunfos esmagadores como o que reuniu a população na praça central de Santa Cruz no último dia 4 de maio, o separatismo não tem vez e o tricolor da bandeira boliviana domina sem contestação. A opção pela tentativa de solucionar problemas econômicos, estruturais, com mais e mais referendos é um sintoma da terrível confusão em que se meteu o governo de Evo Morales depois que seus partidários aprovaram uma nova Constituição trancados num Quartel no qual a oposição foi impedida de entrar. Os “referendos revogatórios”, caso de fato aconteçam, prometem manter o estado de alvoroço em alta. “Vamos ganhar, não temos medo. Viva o presidente Evo Morales”, gritou a senadora do MAS Carmen Rosa Velásquez, enquanto no plenário parlamentares do grupo contrário “Podemos” respondiam: “Revogados! Revogados!”.


 


Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional