Depois de um ano de governo e desgoverno de Evo Morales, a situação está ficando preta para os bolivianos. Eleito com 54% dos votos, hoje tem a aprovação de sete em cada dez residentes de El Alto, a cidade-dormitório junto a La Paz, mas de apenas três em cada dez na província de Santa Cruz, onde estão as maiores riquezas do país. O resultado principal da gestão de um índio aimará no país mais pobre da América do Sul é o aprofundamento da divisão racial, separando de maneira cada vez mais radical os Collas do Altiplano inca dos Cambas do oriente progressista.

O primeiro aniversário da administração do MAS – Movimento ao Socialismo – é um espelho fiel da sua gestão. A capital La Paz está em pé de guerra, com os Collas querendo destituir na marra o governador José Luis Paredes acusado de não apoiar o governo central, numa repetição dos ataques ao palácio de Cochabamba onde o também opositor Reyes Villa teve de fugir da cidade. Nos quatro Departamentos orientais de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija, onde estão 85% das reservas de gás e petróleo da Bolívia, as greves gerais contra Evo começaram em setembro e os enfrentamentos continuam porque lá, no Referendo de 2 de julho, venceram com grande vantagem os Autonomistas, acusados pelos indígenas de quererem dividir a Bolívia. Na verdade, não se trata de um movimento separatista, pois a desejada autonomia apenas colocaria os Departamentos numa situação similar à dos estados brasileiros. Diante dos movimentos populares, que trouxeram de volta às ruas as passeatas e os bloqueios que a tudo paralizam, Evo ao invés de manter a neutralidade antevê a chance de governar sem oposição e propõe uma lei que permita “ao povo”, através de novos e intermináveis plebiscitos, destituir o governante que não lhes agrade. A regra proposta é de que a deposição, a ser pedida por no mínimo 25% dos eleitores, tenha validade se superar a votação recebida pela autoridade quando foi democraticamente eleita.

Enquanto isso, a Assembléia Constituinte instalada há seis meses em Sucre com o objetivo de reformar a Bolívia de cima a baixo, está presa num pantanal porque, diante da inesperada resistência da oposição, o presidente deseja anulá-la por decreto, aprovando as mudanças por maioria simples e não por 75% como reza a atual Carta Magna. Com isso, o MAS passaria a aprovar o que quisesse, sem discussão.

Já os dezesseis ministros comemorarão a data com um pedido de demissão coletiva. Em sua última reunião tentaram resistir e chegaram a votar contrariamente à proposta apresentada, a pedido de Evo, pelo chanceler David Choquehuanca, mas logo descobriram que não tinham opção. Entre os que devem de fato sair estão duas figuras emblemáticas e cujas administrações até aqui foram praticamente nulas. Um é Abel Mamani, o Ministro das Águas, que saiu direto da liderança da poderosa Fejuve, a Federação dos Vizinhos de El Alto (é a mesma que agora quer expulsar o governador) e responsável pelos bloqueios à capital que tanto ajudaram a forçar a eleição de Evo. A outra é Casimira Rodriguez, líder do sindicato das empregadas domésticas que virou ministra da Justiça. Ficando fora do governo, voltarão às ruas e no comando de seus grupos dificilmente darão sossego ao governo.

Duas das medidas de maior impacto em 2006 estão seguindo trajetórias diferentes. Uma, a nacionalização dos hidrocarbonetos, é positiva, pois resultou em mais dinheiro para os cofres públicos e até no primeiro superávit fiscal das últimas duas décadas; a outra, a lei de terras, como ameaça as propriedades maiores situadas em Santa Cruz e arredores, enfrenta ferrenha resistência dos prováveis prejudicados e já originou até a formação de uma Juventude Juvenil Santacruzense, cada vez mais belicosa.

No front externo a situação é mais complicada ainda. Evo Morales transformou-se num fiel seguidor de Hugo Chávez e nada faz sem tê-lo ao lado. Na reunião do Mercosul da semana passada quando inabilmente intrometeu-se nos assuntos internos da Colômbia forçando a reação dura do presidente Álvaro Uribe, foi o venezuelano que o defendeu. Traduzindo o pensamento geral, ao não conseguir interlocutores nacionais para discutir sua situação no governo de La Paz, Paredes (o governador) disse que pediria uma audiência a Chávez, “pois é ele quem manda”.

Os rumores percorrem o país de norte a sul, uns falando de guerra civil, outros de golpe da direita, como noticiou o jornal Nuevo Herald (pertence ao grupo do Miami Herald) ao informar sobre a organização de um “Exército Patriótico” formado por paramilitares e que teria o apoio de uma ampla facção policial e militar insatisfeita com os rumos que o país está tomando. Nos confrontos deste mês em Cochabamba que resultaram em dois mortos e muitos feridos, hordas de cocaleiros paravam as pessoas nas ruas para saber se eram Cambas e se tinham carteira de identidade de Santa Cruz, ameaçando-as em caso positivo e maltratando-as se reagissem. Nunca a divisão racial foi tão nítida na Bolívia, onde a manutenção da paz e da unidade parece cada vez mais difícil.    

* Escritor, Analista internacional

Autor do livro Guerra en los Andes