Problemas não resolvidos por quem de direito terminam por agravar-se ou encontram suas próprias soluções. Não é por falta de aviso: as crises na área de criminalidade e segurança nas grandes e médias cidades brasileiras vêm se repetindo a intervalos menores e em escalas distintas, cada vez mais graves.
No ano passado, ataques freqüentes na avenida Brasil e na Linha Vermelha fizeram com que se difundisse um alerta (não oficial, mas que em seguida chegou ao conhecimento de todos os interessados) aos viajantes: não cheguem ao aeroporto do Galeão à tardinha ou à noite, pois não há garantia de que conseguirão entrar na cidade. Ficava-se sabendo, então, que a guerra entre traficantes, marginais e o poder público atingira um novo patamar, no qual sequer se garantia o acesso à cidade mais maravilhosa do planeta. Isso aconteceu bem depois da moda dos arrastões, mas antecedeu aos ataques do PCC em São Paulo, em maio, julho e agosto de 2006.
Agora atingimos a um ponto ainda mais crítico e perigoso. Atenção: os paramilitares estão aí! Para quem ainda não sabe, paramilitares são grupos civis organizados de maneira similar à militar, que se armam inicialmente para combater outros grupos de bandidos, marginais ou de guerrilha e depois ocupam seus lugares e afazeres. São conhecidos por vários nomes, alguns radicais como esquadrões da morte, milícias, justiceiros, centrais de extermínio, outros mais suaves como grupos ou firmas de proteção e de segurança. Nos tempos da ditadura brasileira, ficaram famosos os primeiros esquadrões da morte, criados pelo delegado Sérgio Fleury para eliminar inimigos do regime.
Mais recentemente, grupos similares foram identificados em São Paulo, Vitória, Campo Grande, para combater o PCC e seus similares, mas nada parecido com as milícias cariocas que, descobre-se agora, já ocupam mais de 13% das suas favelas, ou seja, 92 das cerca de 700 existentes nos morros e alagados da cidade. Lá estão para “combater o tráfico e o crime” e, como precisam sobreviver, cobram taxa (uma mensalidade) de proteção da população, encarregam-se de instalações clandestinas de TV a cabo, intermediam vendas de gás e de todo tipo de serviço, pois, afinal das contas, administram a favela. Ficaram tão importantes que os traficantes decidiram reagir e o fizeram assassinando dezenove pessoas, queimando ônibus, atacando delegacias (a última no sábado, na Linha Amarela), num recado direto às autoridades para que controlem as milícias. É a guerra urbana em outra escala.
Paramilitares são conhecidos na América Latina. No Peru de 1990, quando lutavam contra o Sendero Luminoso e aterrorizavam a população, produziram um número de mortos em conflito (3.384) que superou à da guerra civil do Líbano, mesmo sem os bombardeios de lá. Nos anos 90, Alvaro Uribe (atual presidente da Colômbia) quando era governador de Antioquia criou as cooperativas “Convivir” depois nacionalizadas na administração de Ernesto Samper, destinadas a dar e vender proteção a agricultores ameaçados pelas Farc, e que logo se transformaram nas Autodefesas Unidas da Colômbia, as AUC, as quais além da extrema crueldade com que passaram a agir, dominaram o mercado da droga, substituindo na prática os cartéis de Medellín e Cali. Transformaram-se num exército paralelo, alimentado pela força pública, de quase 30 mil homens que continua ativo, não obstante o processo em curso de absorção pelo governo. “O personagem do ano 2006: o fantasma paramilitar”, disse em manchete a revista A Semana de Bogotá, impressionada com arquivos de Jorge 40, líder das AUC, que relatavam o assassinato de mais de 50 líderes sociais em Barranquilla nos últimos dois anos. É o mesmo tipo de estratégia de combate usado pelos paramilitares de Chiapas, no México. Dia 13 de novembro último 200 deles, usando capuzes e metralhadoras, espalharam a morte na comunidade indígena de Viejo Suárez, acusada de apoiar os Zapatistas. Em todos os casos, a principal fonte de financiamento das atividades desses grupos tem sido o narcotráfico.
Também não há novidade quanto aos componentes do paramilitarismo: elementos das polícias e das forças militares da ativa ou reserva, civis de ultradireita com treinamento em artes marciais, jovens com físico de hércules formados em academias (algumas, que até podem ser pacatas, têm nomes sugestivos como Kamikaze, Pitbull) e a imensa força de base constituída pelas incontáveis “empresas privadas de segurança”. No caso do Rio de Janeiro, há um componente adicional que contribui de maneira decisiva para o aprofundamento do caos. É o regime de trabalho dos policiais, de 12 horas em serviço para 24 ou 48 horas de folga. Nesse tempo “livre”, teoricamente destinado a repor as energias, ninguém descansa. Vai trabalhar nas milícias argumentando que o salário que recebe é insuficiente e nelas demonstra a eficiência que não tem quando está fardado. Os pontos da droga estão mudando de dono, mas este é um processo cuja história, nas cidades brasileiras, ainda está para ser contada, a ferro e fogo como de costume.
Vitor Gomes Pinto é escritor, analista internacional e Autor do livro Guerra nos Andes