O dia de Santa Rita de Cássia, a santa das causas impossíveis, é 22 de maio, mas ao que tudo indica ela não descansa no resto do ano e no domingo esteve muito ativa. Por incrível que pareça o todo-poderoso Hugo Chávez sofreu uma derrota fundamental no referendo venezuelano e as outras torcidas foram ouvidas, rebaixando-se o Corinthians para a segunda divisão. Tudo no mesmo dia: 2 de dezembro de 2007.
Depois de sete eleições (para presidente em 1998, 2000 e 2006, mais três referendos e o pleito legislativo de 2005), o tenente coronel esqueceu a humildade, as vitórias às vezes por estreita margem e jogou fora um plebiscito que estava ganho. Claramente Chávez perdeu para si mesmo, o que pode significar que ele, caso aprenda a lição, ainda tem fôlego para recuperar-se. A oposição estava, até sábado passado, desarticulada, sem unidade, liderança nem esperança, optando por agregar-se a um movimento quase espontâneo nascido na Universidade Central da Venezuela e comandado por um jovem estudante de direito de 23 anos da Universidade Católica Andrés Bello de nome complicado, Yon Goicoechea. Em princípio as chances de dizer “No” à Constituinte ditatorial de Chávez pareciam nulas, mesmo porque esperava-se um comparecimento de 40% dos eleitores, dos quais pelo menos 25% seriam chavistas convictos.
A classe média venezuelana, afora questões de caráter ético ou de princípios políticos, não tem do que reclamar. Afinal, a Venezuela está nadando no dinheiro do petróleo e o socialismo bolivariano, que não é um estado policial, é um socialismo consumista, como afirma Héctor Abad da revista A Semana de Bogotá em uma reportagem sobre o que chamou de viagem ao coração da revolução de Chávez. Casas e edifícios são construídos num ritmo frenético e as estradas já não suportam a infinidade de carros novos que a cada dia por elas trafegam. Favorecidos por importações pelo dólar oficial cotado a 1 por 2.150 bolívares (o não oficial nas casas de câmbio vale mais de 6.000 bolívares), luxuosos BMW e a nova coqueluche, os potentes Hummer 4X4, unem-se a whiskies de 18 anos na cesta de compras de quem pode pagar prestações a perder de vista e sem juros.
Não obstante, desapareceram das lojas e dos mercados os carros básicos e mais baratos, junto com a aguda escassez de artigos de primeira necessidade como carne ou açúcar. Até mesmo o excelente rum nacional escasseia porque a maioria prefere as bebidas importadas. Os produtores preferem oferecer iogurte e queijo cujo preço não está controlado pelo governo, do que vender leite com prejuízo. No poder há nove anos, Chávez se crê intocável e fecha os olhos para o que acontece à sua volta. Beneficia parentes (um irmão é Ministro da Educação, o pai é o Governador do estado de Barinas, outros irmãos estão em bancos estatais e em representações no exterior) e entrega os postos de mando aos militares, considerando-se ainda um deles. Pouco mais da metade do gabinete é ocupado por militares da ativa ou da reserva, afora vários governadores, prefeitos e chefes de escalões intermediários. As embaixadas venezuelanas no exterior são verdes. E todos parecem estar enriquecendo.
Bastou que 56% dos 16 milhões de eleitores comparecessem às urnas para que a retórica incendiária e mal-educada de Chávez se tornasse insuficiente. Fartos de seus programas “Alô Presidente!” de 5 ou 6 horas de duração, considerados de longe os mais chatos das Américas, 4,5 milhões de venezuelanos disseram Não à reforma de 69 dos 350 artigos da Constituição que haviam aprovado em 1999. Outros 4,38 milhões apoiaram a proposta que, segundo Chávez, ele próprio redigiu. As empresas de pesquisa, que davam a vitória do Sim até por 56%x44% com base na boca de urna, afundaram de novo. A diferença, de 125 mil votos, é mínima e surpreendeu o reconhecimento antecipado da derrota pelo presidente que declarou: “a batalha é longa. Não pudemos, por enquanto”, esquecendo-se de sua declaração anterior de que se perdesse seria melhor que seus compatriotas começassem a procurar outro Presidente. Uma explicação corrente é de que a diferença de fato tenha sido muito maior, sendo reduzida para não confessar uma derrota acachapante. No entanto, observadores internacionais reconheceram a legitimidade do pleito e os testes dos mecanismos de contagem eleitoral desta feita não revelaram fraudes. Há um sentimento de alívio no mundo democrata, livre por ora da eternização de Chávez no poder. Isso não significa que ele seja carta fora do baralho, mas representa o renascimento do dualismo ou até mesmo do pluralismo na política venezuelana. As próximas eleições estão marcadas para dezembro de 2.012 e até lá se espera que Chávez se comporte melhor.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, Analista internacional
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