Clara Rojas, candidata a vice-presidente pelo Partido Verde Oxigeno  estava na vistosa camionete Mazda azul junto a Ingrid Betancourt que saíra da cidade de Florencia rumo a San Vicente del Caguán, de onde a guerrilha havia sido expulsa quatro dias antes. Era o dia 23 de fevereiro de 2002 e Clara completaria 39 anos três dias depois. Caíram no primeiro bloqueio de estrada, seqüestradas pelas Farc, as Forças Armadas da Colômbia, e desde então a selva e a montanha são os seus lares.
Algumas tentativas de fuga sem sucesso mostraram-lhes que não havia alternativa. Era preciso adaptar-se. Juan David, um bem apessoado combatente, dava-lhes atenção e Clara começou a gostar dele. O namoro, mesmo às escondidas, prosperou e em 20 de julho de 2004 nascia um garoto, Emmanuel, em um parto por cesariana efetuado contra a vontade da direção da guerrilha (quando é descoberto mais cedo o costume é a indução do aborto) e em condições precárias. Fazendo as vezes de parteira, um dos guerrilheiros puxou a criança e fraturou-lhe o úmero, o osso mestre que une o ombro ao cotovelo. Criado como um bebê indígena, mas saltando de acampamento em acampamento, Emmanuel foi separado da mãe (o pai teria sido transferido para outra Frente de luta, escapando de ser morto pelos companheiros por ter quebrado as normas, colocando o grupo em risco em função do relacionamento com Clara) e definhava a olhos vistos. Em região infestada por insetos, adquiriu leishmaniose, malária e uma diarréia que nunca parava.
A situação se tornou insustentável e em janeiro de 2005 uma lancha chega pelo rio Inirida ao vilarejo de La Paz no estado de Guaviare, próximo à fronteira venezuelana e à região brasileira da cabeça do cachorro no Amazonas. Um casal de guerrilheiros desce com uma criança nos braços e a entrega ao pedreiro José Crisanto Gómez Tovar que lá vivia na miséria, dedicado a raspar coca, com a mulher e cinco filhos. Dizendo-lhe: aqui traemos este niño para que le curen la picadura de pito (é como na região denominam a leshmaniose e doenças similares) y le arreglen (consertem) el brazo.  Seis meses mais tarde Crisanto pediu permissão à guerrilha para ir a um hospital em San José de Guaviare, capital do estado, pois um dos próprios filhos adquirira malária. Não a obteve, mas foi assim mesmo levando toda a família numa canoa em uma viagem de dois dias. Lá se apresentou como tio-avô de “Juan David” (nome do pai, que Crisanto ouvira da guerrilheira que o trouxe), que surpreendentemente seguia vivo, mas uma assistente social diagnosticou desnutrição e maus tratos e o colocou sob os cuidados do ICBF, Instituto Colombiano de Bem Estar Familiar. Graças à intervenção do doutor Juan Alberto Cuta, que ocupa o cargo de “defensor” governamental na cidade, o menino afinal foi transferido a Bogotá onde lhe foi feita a cirurgia no braço e tratadas as seqüelas da leshmania (costuma atacar o nariz e orelhas, destruindo-os nos casos mais graves).
A guerrilha, que aparecia de tempos em tempos na casa de Crisanto, afinal deu-lhe um prazo fatal para que o devolvesse, até 30 de dezembro, sob pena de maltratar sua família. Já sem poder cobrir suas mentiras (dizia que estava com uma irmã e logo voltaria) e aterrorizado pelo assassinato do doutor Cuta (degolado em crime não esclarecido), o raspador pediu proteção às autoridades que não o queriam ouvir mas, afinal, entenderam do que se tratava. O presidente Álvaro Uribe viajou a Villavicenzio onde estava a missão humanitária patrocinada por Hugo Chávez e declarou que as Farc não entregavam seus reféns porque não tinham a um deles: Emmanuel, que na verdade estaria sob custódia oficial na ICBF.
A hipótese, denunciada como mentira pelas Farc e por Chávez, logo se mostrou verdadeira com os exames de DNA da criança, da avó e do tio. Estava desmascarada a farsa montada pelo presidente venezuelano, pela senadora colombiana Piedad Córdoba e por Manuel Marulanda, o líder máximo das Farc, que habitualmente não cumprem a palavra dada e que provavelmente encontraríam outra desculpa para não fazer as entregas prometidas. A operação, com helicópteros venezuelanos decorados com o emblema da Cruz Vermelha, foi um fiasco e Clara Rojas retornou ao cativeiro na selva. Ela não vê o filho há mais de três anos e se comenta que teria desenvolvido problemas psicológicos (quem permanece normal diante de tamanha provação?). Emmanuel tem olhos lindos, sendo um garoto alegre e sorridente segundo seus atuais cuidadores.  É um milagre de sobrevivência, um Moisés que apenas substituiu as águas do rio Nilo pelas do Guaviare e pela selva amazônica colombiana. 


Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional.
Autor do livro Guerra en los Andes (Ed. Abya-Yala, Quito)