À medida em que o processo de mudanças tecnológicas se acelera a velocidades nunca antes vistas, um ranço de guerra fria com suas novas faces por um lado e de populismo cada vez mais defasado de outro faz com que o mundo de hoje ainda se sinta inseguro quanto ao seu futuro. Afinal, se Índia, Paquistão, Irã, Coréia do Norte, a al-Qaeda ou mesmo o grupo de países desenvolvidos onde estão guardadas as armas, por questões de detalhes, resolverem em algum dia do amanhã usar a força nuclear, teremos futuro? Enquanto as dúvidas não se esclarecem, a globalização apressa-se em ocupar todos os espaços disponíveis. É sobre isso que escreve Thomas Friedman, o principal articulista do New York Times, no livro “O Mundo é Plano” (Objetiva) que dá seqüência aos desafios apresentados pelo Autor em “O Lexus e a Oliveira” de sete anos atrás. Tom, como ele gosta de ser chamado, sempre modesto, diz que Cristóvão Colombo em sua viagem às Índias constatou que a terra é redonda e agora ele, fazendo a mesma rota, deu-se conta de que o globo se aplainara, graças ao movimento da globalização que ele divide em três grandes eras: 1.0 quando o mundo reduziu seu tamanho de pequeno para médio (1492 até 1800); 2.0 quando passou a ser pequeno (até o ano 2000) e 3.0 ao se tornar minúsculo e ter o terreno nivelado neste início de século 21.
Para explicar porque o mundo se achatou, lista dez forças decisivas: (a) a queda do muro de Berlim em 9/11/1989; (b) a entrada da Netscape na Bolsa que marca o nascimento do Windows no que chama de abertura das janelas; (c) a criação de estradas de comunicação pela Internet, uma plataforma que permite a comunicação dos aplicativos (softwares de fluxo de trabalho); (d) a revolução do software livre, abrindo os códigos-fonte para uso gratuito; (e) o salto adiante da terceirização por meio do chamado offshoring, que é a transferência de fábricas inteiras, p.ex. dos EUA para a China a fim de produzir o mesmo ou mais com mão-de-obra mais barata, menos tributos, energia subsidiada e menos gastos com os planos de saúde dos funcionários; (f) a difusão das vastas cadeias de fornecimento permitindo ao Wall Mart tornar-se a maior rede de varejo mundial; (g) a internalização dos processos de entrega de produtos; (h) a presença do Google, Alta Vista e outros sites democratizando o acesso à informação; (i) a digitalização de todas as informações imagináveis que já anuncia o lançamento do VoIP, sigla inglesa do Serviço de Transmissão de Voz por Protocolo de Internet e a aposentadoria dos fios que inundam a retaguarda dos atuais computadores.
O livro é, em boa parte, sobre a Índia e a China, contando como a primeira se tornou a grande prestadora de serviços da terra, o paraíso do offshore e a segunda a locomotiva da produção a baixo custo e a preço baixo. A história moderna da Índia começa com a decisão de Jawarlahlal Nehru em 1951 de criar o primeiro dos sete Institutos Indianos de Tecnologia, escolas de altíssimo nível e imunes a pistolões que passaram a formar milhares de excelentes profissionais que necessitaram apenas adaptar o sotaque do seu inglês para, primeiro, serem contratados aos magotes por gigantes das comunicações nos EUA como IBM, Microsoft entre outras e, logo, descobrindo que poderiam fazer tudo sem sair do seu país. É possível encontrar um engenheiro indiano por qualquer salário (em geral cinco vezes menos que nos Estados Unidos) e que trabalha incansavelmente na hora em que, devido à diferença no fuso horário, os executivos dos países desenvolvidos estão dormindo. Declarações de imposto de renda com sigilo protegido, rastreamento de bagagens perdidas nos aeroportos, não há o que não possa ser terceirizado para Bangalore, o vale do silício indiano.
Depois que Deng Xiaoping declarou sorrindo que “ficar rico é maravilhoso” e que “não importa se o rato é branco ou preto, o importante é que cace o rato”, a China não parou mais de expandir sua economia e, entre tantas façanhas, ocupou o lugar do México como segundo maior exportador para os EUA nas áreas de têxteis, brinquedos, componentes de computadores e eletricidade, tênis, equipamentos esportivos. Quando um jornal da terra de Pancho Villa constatou que a fábrica de calçados Converge estava fabricando calçados na China usando cola mexicana, perguntou “porque estamos dando a eles a nossa cola?”, não se dando conta de que a pergunta necessária era “quanta cola lhes podemos vender?”. O fato é que ocorreu o milagre de incorporar cerca de 3,5 bilhões de chineses, indianos e russos, mas também latino-americanos ao mercado econômico global, onde rapidamente se transformam em atores e competem por si mesmos, como novos jogadores num novo campo de jogo.
Ainda segundo Friedman o fator-chave para que um país consiga progredir de ora em diante é, na verdade, sua base cultural (considera que, isso, a tradição russa, chinesa e indiana fornecem de sobra) que se traduzirá em trabalho árduo, honestidade e tenacidade. No pólo oposto estão os países distanciados da planície e sempre próximos do perau, ou seja, do precipício (na minha terra, o Rio Grande do Sul, Perau é um declive íngreme que termina dentro do rio). Os mais nítidos são os que servem de base para bin Laden, mas a América Latina, cada vez mais o habitat de líderes populistas, tem imensas dificuldades para superar o ritmo lento de crescimento econômico que caracteriza boa parte do seu território. Ele aproveita para lembrar que o atraso democrático de países como Venezuela, Arábia Saudita, Irã e Nigéria se deve à maldição do petróleo. Como a riqueza dos governantes, que fazem de tudo para perpetuar-se no poder, não vem dos impostos, não há porque prestar contas ao povo, bastando apoderar-se do dinheiro que jorra dos poços para exercer o domínio absoluto. O Brasil não é citado ao longo da volumosa obra de 471 páginas, a não ser para lembrar que há uma subsidiária da Dell em Eldorado do Sul e que aqui são necessários dez anos para completar os procedimentos de falência de uma empresa, contra seis meses no Japão e na Irlanda. Para reforçar o conceito do país no mundo globalizado, damo-nos ao luxo de arrasar, em poucos meses, com a credibilidade da aviação comercial brasileira, conquistada a duras penas durante décadas.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional,
Autor do livro ZIM, Uma aventura no sul da África