Duas ilhas paradisíacas em pleno Mediterrâneo, na porta da Europa, encaram a tragédia dos naufrágios que nos últimos dias vitimaram mais de trezentos fugitivos africanos. Uma é Lampedusa, com apenas 20 km2 e 6 mil habitantes, o ponto extremo da Itália, 205 quilômetros ao sul da Sicília e 113 ao norte de Tunis. A outra é a República de Malta, um pouco maior (316 km2 e 416 mil residentes) mas, ainda assim, uma gota no oceano. Barcaças e navios superlotados com mais de 500 pessoas cada, só por milagre conseguem entregar com vida sua carga de desesperados, mas não há novidade nem surpresa em mais esses desastres humanos que agora assustam a Europa. Na tentativa de entrar no velho continente por essas águas, contabilizam-se 25 mil mortos e desaparecidos ao longo dos últimos vinte anos, de acordo com a ONU. Depois da Primavera Árabe de 2011 o fluxo de migrantes do continente africano aumentou e só nos dez primeiros meses deste ano outros 25 mil desembarcaram na costa da Sicília e da Calábria, quase três vezes mais em relação aos números de 2012. 

Muamar Kadafi comerciava com a massa de migrantes, mantendo-os em cativeiro e abrindo ou fechando as comportas ao sabor de suas negociações com o ocidente. No segundo aniversário da morte do ditador que permaneceu mais de quatro décadas no poder, o atual 1º ministro líbio, Ali Zidan, não tem o que comemorar em um país tomado pelas milícias e com uma grande quantidade de armas em circulação. Em outubro ele mesmo foi seqüestrado por algumas horas e agora ameaça prorrogar o prazo dado ao seu governo provisório (termina em fevereiro) para elaborar nova Constituição e convocar eleições gerais.

Na vizinha Tunísia, após a derrubada do regime de Ben Ali, com o assassinato em julho por brigadas jihadistas do deputado oposicionista Muhamed Brahmi, o decreto que estabelece o Estado de Emergência foi mais uma vez renovado, desta feita por oito meses (normalmente a prorrogação se dava a cada três meses), pela falta de entendimento entre o partido governista Ennahda que é muçulmano e se propõe a islamizar o país, e a Frente de Salvação Nacional, um amplo leque de partidos políticos e entidades civis de oposição. Analistas afirmam que não tem fim a crise política e a violência que paralisam Líbia, Tunísia e também o Egito.

Os náufragos de Lampedusa e Malta eram eritreus e tigrés, um povo de raça semítica que habita a Eritréia, o Sudão e o Djibouti. Deslocaram-se por uma rota que os levou à cidade litorânea líbia de Misrata, a poucas horas de Trípoli (a costa mediterrânea da Líbia estende-se por 1.770 km). Outras levas de migrantes vêm do centro do Sudão, de países vizinhos como a Etiópia e o Niger e até do Saara Ocidental junto ao Marrocos. Em pleno deserto líbio, são reunidos pelos traficantes num campo de concentração próximo ao oásis de Sabah, onde as torturas e os estupros são corriqueiros. Por fim os barqueiros cobram entre 3.300 e 3.500 dólares por cabeça para fazer a arriscada travessia final. Os que alcançam Túnis, ainda mais próxima da costa italiana, não costumam ter melhor sorte.

Frente à miséria africana, erguem-se as barreiras da intolerância e do racismo europeu. Partidos xenófobos, radicais de direita, com freqüência antissemitas e neonazistas, são ultranacionalistas, contrários à União Européia e conquistam cada vez mais adeptos. Um deputado do partido Jobbik, que é governo na Hungria, chegou a pedir a elaboração de listas de judeus. Na Bulgária o partido Ataka que entrou no Parlamento ao receber 7% dos votos, considera turcos e ciganos como delinqüentes. O partido anti-Islã de Gerd Wilkers já é a 2ª. força política na Holanda, enquanto o Partido Popular danês, a Plataforma Per Catalunya catalã, o Amanhecer Dourado na Grécia, o UKIB no Reino Unido, o Partido Verdadeiros Finlandeses em Helsinki combatem a presença de migrantes palestinos, árabes, africanos e os perseguem sistematicamente, sem perdoar os latino-americanos. Os extremistas do Partido da Liberdade de Heinz-Christian Stracke ganharam a prefeitura de Viena com propostas similares às adotadas pela Nuova Forza na Itália e pala Frente Nacionalista de Marine Le Pen que alcançou 18% dos sufrágios no 1º turno das últimas eleições francesas.

As propostas de solução revelam a confusa falta de opções práticas com que se debate a Europa. Giusi Nicolini, a prefeita de Lampedusa, disse ao Conselho Europeu em Bruxelas que sem uma nova política de direito de asilo e não só de imigração, a Europa também vai naufragar em Lampedusa. Há os que querem controlar as costas dos países africanos, os que pretendem militarizar os mares numa guerra aos traficantes de gente e os que apostam em políticas de ajuda ao desenvolvimento africano para que seus habitantes fiquem por lá ao invés de virem incomodar o mundo ocidental. Outros propõem uma gigantesca operação de resgate por todo o Mediterrâneo, do Chipre até a Espanha, para localizar barcos com imigrantes na tentativa de evitar novos desastres. Não se dão conta de que o tempo passou e a exploração de mão de obra barata e de recursos primários, que propiciou boa parte do crescimento econômico europeu, agora cobra o seu preço.

 

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional