Entre as piores ditaduras e as melhores formas de participação direta da população nas decisões, há regimes governamentais para todos os gostos mundo afora. O ideal democrático ainda é uma opção para poucos. Segundo o Índice de Democracia (ID 2006) criado pela prestigiosa publicação londrina The Economist, de um total de 167 nações, apenas 27 vivem um estado democrático pleno (23 na Europa, mais Costa Rica, Uruguai, Ilhas Maurício e República Tcheca), concentrando 13% da população mundial. Outras 55 são tidas na categoria de regimes autoritários, com as piores notas para o Chade, República Centro Africana e Coréia do Norte. O Brasil ficou em 42º lugar, no bloco das “democracias imperfeitas”, categoria acima à dos chamados “regimes híbridos” onde amargam seu calvário países como Equador, Venezuela, Rússia, Haiti e Iraque. Para chegar a essas conclusões a revista utiliza cinco critérios: pluralidade do sistema político, funcionamento do governo, liberdades civis, participação política da população e cultura/tradição política. Os dois últimos critérios é que ocasionaram a desfavorável posição brasileira.
Analisando a famosa assertiva de Winston Churchill de que democracia “é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras que têm sido experimentadas”, Manfred Schmidt da Universidade de Heidelberg afirma que a maior fraqueza deste sistema está em permitir (com surpreendente freqüência) a tirania da maioria, afora todas as dificuldades para que alguns dos seus mais essenciais princípios sejam colocados em prática: liberdade de opinião, imprensa livre, divisão efetiva do poder com judiciário e legislativo independentes, respeito às minorias, além de controles civis eficazes sobre os aparatos militar e policial, aceitação da transferência do poder para a oposição com base em eleições regulares, existência de barreiras reais que impeçam o domínio de um só partido ou grupo. A preocupação, na verdade, é com os Estados onde vigoram “as piores formas” referidas pelo chanceler inglês.
   A discussão tem plena atualidade num momento em que a América Latina enfrenta uma epidemia de regimes bonapartistas, modernamente conhecidos como neopresidencialistas ou falsas democracias (outros os denominam de democracias de enclave ou de domínio), nos quais o presidente, além de ser o chefe do Estado, concentra no Executivo atribuições que normalmente são das outras duas instâncias, constituindo um tipo de poder autocrático, mas mantendo uma democracia formal, com Constituição vigente, leis aprovadas pelo Parlamento, eleições universais e diretas. Parece democracia, mas não é.
Legislativo e Judiciário são anulados e há uma dominação das decisões pelo Presidente-monarca com exclusão dos representantes eleitos pela população ou dos técnicos que conquistaram seus postos pelo mérito ou conhecimento.
As divisões tradicionais entre esquerda e direita, democracia e autoritarismo, socialismo e capitalismo, perdem relevância e são substituídas pelo déspota que passa a encarnar os desejos de todos e a administrar a justiça a seu bel prazer, com apoio da elite que o vê como solução para manter sob controle as camadas mais pobres da população. 
O exemplo mais claro na América do Sul de hoje é Hugo Chávez Frías na Venezuela, que se prepara para aprovar uma lei que lhe permite permanecer eternamente na presidência. Seu governo, definido pelo professor da Universidade de Zulia, José Molina, como de “esquerda autoritária”, usa e abusa do recurso aos plebiscitos e referendos populares num país onde o voto não é obrigatória e a minoria ativa dos militantes bolivarianos se impõe com facilidade. Na vizinha Bolívia, Evo Morales tenta seguir a receita, mas ainda enfrenta dura resistência da oposição. Até mesmo Álvaro Uribe, na Colômbia, numa recente entrevista a Andrés Oppenheimer, não negou a possibilidade de um terceiro mandato (e, então, quantos mais?). Lula, que não tem sucessor à vista, é outro candidato a ceder a tamanha tentação. O equatoriano Rafael Correa, pelo que já fez nos seus primeiros três meses de governo, começa a trilhar o mesmo caminho. Na Argentina, Kirchner tenta emplacar a esposa, Cristina, para depopis reinar mais oito anos.
A origem do termo Neopresidencialismo é a França de dezembro de 1851, época do golpe dado por Luis Napoleão. Cunhou-se, a partir daí, a expressão “bonapartismo” que, de acordo com Norberto Bobbio em seu Dicionário de Política, tem um significado para a política interna e outro para a externa. No primeiro, o Legislativo – no estado democrático representativo, o poder primário e fundamental – é na prática desautorizado, subordinando-se ao comando de um Executivo a cargo de um personagem grande e carismático. No segundo, designa uma política externa agressiva que visa fortalecer o domínio dentro do próprio país. Ou seja, cria conflitos ou define aliados e inimigos no front internacional que servem de válvula de escape para esconder os defeitos e problemas internos, enfraquecendo a oposição e anestesiando os movimentos populares. Na prática, os dois conceitos são intercomplementares.
Em democracias ainda verdes, ou falsas, como as que tentam consolidar-se na América do Sul, o problema maior é o de fazer com que os critérios mais básicos de um modelo eleitoral justo (sistema multipartidário competitivo, sufrágio universal com participação da grande maioria mesmo que o voto não seja obrigatório, acesso dos partidos à população através da mídia e de campanhas abertas) possam funcionar sempre e não só de vez em quando.   


 


Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional