GENOCIDIO MAIA E O GENERAL

Vitor Gomes Pinto

Os maias, cujas origens remontam pelo menos a 1.500 A.C., construíram uma das mais avançadas civilizações das Américas, mas chegaram ao século XX precariamente urbanizados e empobrecidos, incapazes de resistir quando o exército guatemalteco sob o comando do general Efraín Ríos Montt decidiu eliminá-los por achar que estariam apoiando a guerrilha esquerdista. Na Guatemala tudo começou em 1954 com a expulsão pela CIA do presidente eleito Jacobo Arbénz, cujo pecado foi tentar uma reforma agrária que incluía a desapropriação de terras ociosas pertencentes à United Fruit Company, originando uma guerra civil que perdurou pelos 36 anos seguintes com o saldo trágico de 660 massacres e 200 mil vítimas entre mortos e desaparecidos. Eram tempos de guerra fria e John Negroponte, o inglês que se tornou embaixador norte-americano na vizinha Honduras (mais tarde no Iraque), organizou os Contras para derrubar o governo sandinista na Nicarágua e os esquadrões da morte que infestaram a região, entre os quais as bárbaras Patrulhas de Defesa Civil – PAC – instituídas no governo de Ríos Montt. O general, aos 86 anos de idade, acaba de se transformar no primeiro presidente condenado por um tribunal nacional, com penas de 50 anos por genocídio e mais 30 anos por crimes de lesa humanidade.  As sentenças foram firmadas pela juíza Jazmín Barrios, uma mulher de baixa estatura, voz esganiçada e caráter inquebrantável que já escapou de um atentado a granadas perpetrado por mandos militares no pátio de sua casa. O processo inicial foi pedido pela Nobel da Paz, a índia maia Rigoberta Menchú, e só se tornou possível graças ao trabalho de desclassificação de documentos dos governos dos EUA e da Guatemala procedido pela professora Kate Doyle da seção de Arquivos de Segurança Nacional da Universidade George Washington.

 O julgamento de Ríos Montt referiu-se aos dezessete meses de sua presidência, de março de 1982 a agosto de 1983, e apenas a quinze massacres nos quais foram assassinados 1.771 indígenas ixiles (uma das 22 etnias maias que vivem no chamado Triângulo Ixil composto pelas localidades Nebaj, Chajul e Cotzal) no departamento nortista de Quiché, quase fronteira com o México. Em geral era uma das Patrulhas de Paraquedistas que cercava a aldeia para incendiá-la e logo começar as torturas, o estupro de mulheres e meninas que terminavam com as execuções em massa. Ele passou de chefe das Forças Armadas a presidente em um Golpe de Estado ao derrubar Lucas García, em cujo mandato ocorreu a tomada da embaixada da Espanha (fora invadida por 30 guerrilheiros em janeiro de 1980) pelas forças de segurança numa ação baseada na tática de terra queimada que resultou em 37 mortes, incluindo o pai de Rigoberta e o vice-cônsul espanhol. Alguns outros massacres já foram julgados, mas sempre condenando peixes pequenos: na chacina de Río Negro, cinco patrulheiros das PAC foram condenados a 780 anos de prisão por assassinarem em um só dia (13 de março de 1982) a 177 mulheres e crianças; na zona de Las Dos Erres, departamento de Petén, cinco soldados de um grupo militar de elite – segundo os testemunhos – ao chegar passaram a vedar, estrangular e matar a marteladas a homens, crianças e mulheres, estas depois de as violarem, lançando a maioria dos cadáveres de 202 camponeses em um poço de 15 metros de profundidade. Receberam penas de 6.060 anos (30 para cada vítima).  À época o general convertera-se a um ramo fundamentalista da Igreja Pentecostal da Palavra com sede na Califórnia e num país quase inteiramente católico chegou a negar pedidos de clemência do Papa João Paulo II por seis homens que condenara ao paredão.

Os arquivos apresentados não deixaram dúvidas nos jurados, em especial ao descreverem em detalhes a queima e saques de pessoas da população civil na Operação Sofía executada em Nebaj sob as ordens diretas do chefe da Unidade, o major Tito Arias, codinome então usado por Otto Pérez Molina que desde janeiro de 2012 é o presidente da República da Guatemala (derrotou, com 54% dos votos, o empresário de centro-esquerda Manuel Baldizón).  Dedica-se, atualmente, à repressão dos cartéis mexicanos de drogas que transformaram o país num dos mais violentos do mundo. O presidente disse que seu governo respeita as decisões da Justiça e desqualificou as acusações contra si como um falso testemunho.   

Quanto a Ríos Montt, que vai apelar das penas que lhe foram impostas, já está dormindo na prisão, mas não na mesma reservada a criminosos comuns e sim entre seus pares. Recolheram-no ao QG de Matamoros, o único utilizado como unidade prisional de caráter civil e que até hoje abriga somente a outros quatro detentos vip. Trabalhando com a Organização Pan-Americana da Saúde, estive na Guatemala (e na Nicarágua) no final dos anos setenta e início dos oitenta, testemunhando o êxodo de professores receosos de assumirem posições independentes pelo risco de serem denunciados pelos próprios alunos e em seguida caçados e executados. Embora as chagas permaneçam abertas nas famílias das vítimas da ditadura, a punição exemplar de um dos seus principais responsáveis abre um caminho de esperanças. Um vídeo divulgado pelo The Guardian (Guatemala genocide trial) inclui um verso do poeta maia-quiché Ak’abal: se os ossos dos mortos falam, porque os vivos devem ficar quietos?