Guerras pela água

Bem Paraná

A Terra é azul porque três quartos da sua superfície está coberta de água. Pena que 98% pertença aos oceanos. Da pequena parcela que corresponde à água doce, 90% está estocada nos pólos e no subsolo. O resultado final é que somente 0,26% de toda água existente está disponível para consumo humano. Não é de admirar que estejamos à beira de uma grande crise e que em regiões de mais intensa escassez como no Oriente Médio se fale em guerras pela água, o bem mais precioso. Mesmo no Brasil, onde estão 12% das reservas planetárias de água doce, a distribuição e o acesso são desiguais.
Quando a ONU promoveu o último Fórum Mundial da Água os debates foram mais intensos que nunca sobre como levar à prática resoluções já tomadas em mega-reuniões anteriores nas quais se firmou o compromisso de reduzir à metade até 2015 a proporção de pessoas sem acesso a água potável e segura (e a serviços de saneamento básico). Para que tais metas se concretizem, havia e há necessidade de aplicar nos países em desenvolvimento e em transição (Europa Oriental) 180 bilhões de dólares ao ano, mas os gastos não têm chegado nem à metade de tal quantia.
O diagnóstico, inclusive da Unesco em seu recente relatório “Água para as pessoas, água para a vida”, é de que os muitos e bons objetivos estabelecidos nas conferências internacionais realizadas no último quarto de século não foram atingidos. Assim, se hoje cerca de 1,4 bilhão de pessoas não obtém água potável, a previsão é de que cheguem a pelo menos 2 bilhões em 2050 (na pior das hipóteses, 7 bilhões) quando o mundo terá 9,3 bilhões de habitantes 
Quatro vilões vem sendo duramente condenados: a privatização das empresas de água e saneamento por deixarem os mais pobres de fora, a irrigação por ser “extremamente ineficiente” (60% da água usada é desperdiçada), as barragens (é preciso maximizar benefícios sociais e ambientais e não só os econômicos) e a poluição (junto com os resíduos industriais está na base da crise). Apesar da Convenção das Nações Unidas em Mudanças do Clima antes aprovada em Kyoto, as mudanças climáticas por si só responderão por um quinto da escassez de água nas duas décadas que se seguem.
A disputa pela água é uma razão a mais que explica os conflitos no Oriente Médio, onde só os três países banhados pelo Tigre e pelo Eufrates são auto-suficientes. Na região, a disponibilidade anual de água é de 2110 metros cúbicos por pessoa no Iraque, contra somente 300 em Israel e 100 na Palestina. Os dois grandes rios nascem nas montanhas da Anatólia, no sul da Turquia, país que mantém a capacidade de negar, a qualquer momento, água para Iraque e Síria, principalmente por meio da gigantesca barragem de Ataturk, na verdade um conjunto de 22 represas, que controla o fluxo hídrico no Eufrates (nele o Iraque tem sete barragens, mas uma só é usada como hidrelétrica, sendo as demais destinadas à irrigação).
A guerra de fronteiras de 1998 entre turcos e sírios foi muito mais uma batalha pela água do que pelo domínio do povo curdo. Basra, a segunda cidade do Iraque (2,2 milhões de habitantes), permanece no olho do furacão da crise mundial pela água. É um ponto estratégico essencial, pois ali o Tigre e o Eufrates se unem passando a chamar-se Shatt-Al-Arab, para mais adiante (após receberem o aporte do rio Karun), lançarem-se com toda força no Golfo Pérsico. A ocupação norte-americana parece ter agravado seus problemas. As milícias de Moqtada al-Sadr (líder dos terroristas muçulmanos Shia) sabotam os canais contaminando-os e o que sobra ou é inútil devido à intensa salinização ou é desviada pelos próprios moradores que lutam entre si por um pouco de água potável. A internacionalização dos dois rios, solução mágica tantas vezes aventada, será uma solução ou uma arma a mais a ser manejada ao bel-prazer dos invasores?


Vitor Gomes Pinto
Escritor, Analista internacional