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Em Montréal, antes de iniciarem os trabalhos da Conferência Internacional para a Reconstrução do Haiti, os representantes das chamadas “nações doadoras” guardaram um minuto de silêncio pelas vítimas do terremoto que arrasou Porto Príncipe e arredores em 12 de janeiro. Nenhuma palavra de arrependimento foi pronunciada, mas Hillary Clinton e o primeiro-ministro canadense Stephen Harper frisaram que a ajuda financeira será rigorosamente monitorada para evitar desperdício ou roubo. “Temos a responsabilidade de assegurar aos nossos contribuintes que o dinheiro será gasto com transparência” disse a Secretária de Estado norte-americana, segundo o jornal Toronto Sun. A porta-voz do FMI, Caroline Atkinson, anunciou um empréstimo de US$ 100 milhões, enfatizando que será sem juros e com 5 anos para que o governo haitiano comece a pagar esta nova dívida. Perguntada se seriam perdoados débitos para com a comunidade internacional do país que é um dos mais pobres do mundo e está em situação de catástrofe, ela sorriu e gentilmente informou que este não era assunto para agora e sim para o futuro.
O terremoto de 7 graus pela escala Richter, foi uma desgraça anunciada. Em entrevista ao jornal haitiano Le Matin em 25/9/2008 o geólogo Patrick Charles da Universidade de Havana disse que o perigo de um abalo de 7.2 graus era iminente na falha Enriquillo que atravessa Porto Príncipe de lado a lado e é similar à San Andrés que ameaça a Califórnia. Idêntico alerta surgiu na Conferência de Geólogos do Caribe do mesmo ano, recordando o tsunami de 1946 e o terremoto que destruiu a cidade em 1770. Para o professor Jian Lin da Universidade Oceanográfica de Massachusetts, “os geólogos não deveriam se surpreender com o ocorrido no Haiti”. Os terríveis resultados – cerca de 200 mil mortes – devem-se a fatores como: a) o movimento das placas tectônicas ocorreu a baixa profundidade afetando mais a superfície; b) o abalo atingiu uma área muito populosa e com intensa pobreza que multiplicou as habitações precárias; c) a falta de previdência das autoridades que ignoraram os avisos e preferiram rezar para que nada acontecesse.
Sempre é possível justificar a ausência de medidas preventivas em relação a abalos sísmicos pela emergência de mil outras medidas, como a do controle da criminalidade e o combate à fome, mas é inegável que a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, a Minustah, criada já há quase seis anos (em abril de 2004 com o objetivo, entre outros, de favorecer o desenvolvimento institucional e econômico do país), foi apanhada inteiramente de surpresa, não conseguindo sequer evitar baixas em suas próprias forças, incluindo a morte de 18 militares brasileiros (além de 3 civis) e 21 canadenses. Agora, diante do caos, vem o corre-corre e os inevitáveis entrechoques. A ONU aumentará seu contingente de 7.200 para 10.700 homens. O Brasil decidiu mais do que duplicar sua presença enviando um grupo adicional de 1300 militares. Barack Obama agiu rápido e autorizou o envio de 10.000 homens e forte infraestrutura. Os franceses queixam-se de que um avião com um hospital foi impedido de descer no aeroporto de Porto Príncipe sob controle americano e seu Secretário de Estado, Alain Joyandet, quase causa um incidente internacional ao dizer que “eles se preocupam em ajudar o Haiti, mas não se preocupam por tê-lo ocupado”.
As desavenças são antigas. O Haiti cometeu o crime de rebelar-se contra o colonialismo francês: aboliu a escravidão e foi o primeiro país latino-americano a declarar sua independência, em 1804. Em represália por ter perdido seus escravos a França impôs à nova república a fantástica multa de 150 milhões de francos. Os EUA ocuparam o Haiti por dezenove anos (governo de Woodrow Wilson desde 1915) reinstituindo a escravidão; mais tarde apoiaram o ditador dominicano Rafael Trujillo ignorando o massacre que tirou a vida de 25 mil haitianos em 1937 e, já com John Kennedy, deram sustentação às três décadas de domínio da família Duvalier. O Haiti, apesar do açúcar, pagou tudo, foi à bancarrota e nunca mais se recuperou. Quando o presidente eleito Jean Bertrand Aristide (em 2003) exigiu a devolução do dinheiro que seu povo fora forçado a pagar à França, o ministro do exterior Dominique Villepin enviou sua irmã a Porto Príncipe para dizer-lhe que era hora de renunciar. Vale recordar que o Brasil atravessou o Império, no século XIX temendo sua “haitização”: uma revolta dos negros escravos que em 1850 representavam 44% da população do Rio de Janeiro.
O devastamento do Haiti, por causas naturais, é uma excelente oportunidade para salvar as dívidas passadas. O país centro-americano nada mais tem a pagar e tudo a receber. O custo para o mundo rico e para os emergentes não há de ser alto, além de que enfrentar uma nova revolução causada pela desesperança certamente custaria bem mais do que qualquer estimativa de ajuda nas atuais circunstâncias. Um terço da Ilha Hispaniola (nos outros 2/3 está a República Dominicana) significa um território de 28 mil km2, o tamanho do estado de Alagoas, e ai vivem 9,3 milhões de pobres, menos do que os habitantes de São Paulo. Bill Clinton esteve lá e declarou que é necessário um Plano Marshall, referindo-se ao apoio dos EUA para recuperação da Europa no pós-guerra e que consumiu cerca de 13 bilhões de dólares. Nem tanto, nem tanto. O chefe do governo canadense falou em um esforço de dez anos para recuperar o Haiti. Espera-se que não seja um favor e que dure menos tempo.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, Analista internacional
Autor de “Guerra nos Andes