Liberdade para Suu Kyi

Bem Paraná

Em frente ao imenso pagoda de Shwedagon na colina de Singuttara os monges com suas sandálias em passos miúdos e silenciosos e o povo no vaivém de costume encontram agora uma nova paisagem que lhes permite esquecer um pouco os quatro budas de ouro que, afinal, segundo a lenda lá estão há 2.500 anos. Por toda parte em Rangun o que se vê são faixas, cartazes e principalmente os coloridos posters com a figura de Aung San Suu Kyi que, depois de passar 15 dos últimos 21 anos em prisão domiciliar, no último dia 13 foi libertada pela Junta Militar que desde 1962 domina Myanmar, a antiga Birmânia. A guarda permanente que lá esteve por sete anos afastou-se e as portas de sua casa, às margens do Lago Inya onde reside boa parte da elite birmanesa, afinal foram abertas. Uma mulher ainda jovem aos 65 anos, 1 metro e 66 de altura e a própria imagem da fragilidade, sorriso contido, mas radiante, volta a liderar a Liga Nacional para a Democracia, LND, única oposição consistente ao regime ditatorial que desde 1992 é chefiado pelo general Than Shwe.
Os birmaneses não têm sobrenome. Usam um só nome e o vão modificando ao longo da vida. Ela adotou o nome do pai, o general Aung San, herói nacional que comandou o exército e a conquista da independência, morrendo assassinado em 1947. Depois acrescentou Suu e Kyi em homenagem à avó e à mãe que a criaram. Conhecida pelo povo simplesmente como A Dama, estudou em Nova Delhi, Nova York e Londres, onde casou com um professor inglês com o qual teve dois filhos. Trabalhou na ONU e retornou ao seu país para formar a LND, mas na chamada revolução dos quatro oitos, em 8/8/1988, uma passeata pacífica foi reprimida a ferro e fogo. Logo ela conheceu a prisão domiciliar pela primeira vez, mas em 90 obteve uma vitória clara, com 58% dos votos na primeira eleição livre do país. A Junta não aceitou o resultado, encarcerou-a de novo e esqueceu de vez a democracia. Um ano depois Sun Kyi foi agraciada com o Prêmio Nobel da Paz, recebido pelo marido e pelos filhos.
Myanmar era o 2º país mais desenvolvido do sudeste asiático (em 1º Filipinas) nos tempos de domínio inglês, quando batia recordes de produção de arroz, gás e madeira. Hoje se ombreia à Coréia do Norte em termos de falta de liberdade e opressão, figurando entre as mais pobres nações do mundo. O triângulo dourado do ópio (Tailândia, Birmânia e Laos) já não existe, mesmo porque cerca de 90% da produção mundial de heroína está concentrada no Afeganistão, mas Myanmar mantém a segunda posição com 6% do total. A empresa estatal de gás é tida como o principal foco de lavagem de dinheiro dos lucros da heroína. O comércio de pedras preciosas segue florescente, com rubis, diamantes, safiras, pérolas do Vale do Mogote, de Mong Shu e de Phakant sendo disputados acirradamente por sua alta qualidade nos leilões periodicamente realizados em Rangum, onde as vendas, sempre intermediadas pelas forças armadas, ultimamente têm crescido até  45% ao ano.
Seis dias antes de libertar Sun Kyi, a Junta realizou eleições marcadas por grosseiras fraudes para renovação do Parlamento. Como era esperado a Associação para a União, Solidariedade e Desenvolvimento, braço eleitoral do governo, venceu com 76,5% dos votos, obtendo 883 das 1154 cadeiras em jogo. Não obstante, a oposição conseguiu 124 cadeiras e o fato de que três partidos representando minorias étnicas costumeiramente perseguidas conseguiram figurar entre os cinco mais votados, foi comemorado como uma vitória. Agora articulam a formação de uma frente unida oposicionista, mas o investimento além de caro é de alto risco, considerando a possibilidade sempre presente de que todos terminem, como de costume, na cadeia.
Em suas primeiras entrevistas e discursos em público, Suu Kyi adotou uma posição inspirada em Mahatma Gandhi, pedindo a superação do passado e a união de todos sem denunciar o governo nem a China e outros países vizinhos que têm sustentado o regime política e financeiramente. Em princípio, a Junta Militar resolveu não inventar-lhe uma nova condenação pensando em utilizá-la como parte de um programa de sete passos rumo a uma democracia disciplinada para obter o alívio ou até mesmo o fim das sanções econômicas que o ocidente e a ONU impõem. Sun Kyi enfrenta um dilema, pois não gostaria de permitir que seu nome seja usado sem que concessões reais sejam feitas. Ela foi libertada e ninguém sabe se e quando poderá novamente ser detida. Enquanto isso, cerca de 2.100 presos políticos mofam nas prisões do governo e pelo menos um milhão de birmaneses luta pela sobrevivência em campos de refugiados na Tailândia, Índia, Bangladesh e Malásia. Os Estados Unidos tentam uma aproximação baseada no pragmatismo e, temerosos de que se concretize uma aliança militar entre Myanmar e a Coréia do Norte, negociam armas para o exército de Than Shwe a fim de que se engaje no combate aos talibans da Al Qaeda.          
 

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional