O Congresso Nacional, atarantado e envolvido com seus interesses particulares como de costume, desta feita tem uma difícil missão pela frente. Ao ser arrastado por sete quilômetros até morrer (preso pelo sinto de segurança do carro roubado por um garoto de 16 anos e outro de 18 que dois anos antes fora preso por latrocínio), João Hélio Fernandes de 6 anos reabriu a discussão que silenciara por pouco tempo, desde a última tragédia do mesmo naipe. É um debate complexo, na verdade sobre “esse país” que no dizer do Presidente nunca em sua história se desenvolveu tanto como hoje. Não se sabe por que, dos mil problemas a resolver uma solução milagrosa ganhou as manchetes: a maioridade penal, ou seja, a idade a partir da qual uma pessoa adquire a capacidade plena de assumir os crimes que praticar, passaria dos atuais 18 anos para 16, permitindo um julgamento igual ao dos adultos.
Atualmente o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – de 1990, considerado um dos mais modernos e bem elaborados códigos legais do planeta, estabelece que dos 12 aos 17 o jovem que infringir a lei está sujeito a seis medidas: advertência; reparação do dano causado; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; semiliberdade e internação em centros apropriados para adolescentes, esta no máximo por 3 anos. Na prática, a ressocialização não tem funcionado e a internação nas Febens da vida tem taxas de reincidência de até 80%. Asma Jahangir, Relatora para Execuções Sumárias e Extrajudiciais da ONU em visita ao Rio de Janeiro declarou, em 2003, que seus centros de detenção juvenil eram verdadeiras masmorras.
A proposta de mudança do ECA expôs o turbilhão de mazelas que assola o país e costuma ser referido como causa da violência urbana: pobreza, desemprego, falta de perspectivas profissionais e de lazer, consumo de drogas e narcotráfico, alcoolismo, lares desfeitos, corrupção e falta de ética em todas as instâncias dirigentes e, nos “centros apropriados de internação”, celas estreitas e jovens mantidos em inatividade que aprendem a ser bandidos e relatam abusos e maus tratos numa demonstração de que são tão ou mais castigados que os maiores. Enquanto a população, ao ser consultada em pesquisas de opinião, em grande maioria diz concordar com a redução da maioridade penal, duas correntes de opinião passaram a se confrontar cada vez mais radicalizadas. De um lado, os realistas, que advogam a adoção pura e simples do chamado sistema biológico, rebaixando a maioridade penal para 16 anos sem necessidade de avaliar o grau de desenvolvimento psíquico-emocional, pois o Brasil não possuiria estrutura para realizar perícias que só atrasariam a aplicação da justiça e congestionariam ainda mais o sistema de saúde. De outro lado, os poetas e sonhadores, para os quais a sociedade deve pensar em processos educativos desde o berço, o adolescente deve ter a oportunidade de reorganizar sua vida e o Estado precisa primeiro resolver os grandes problemas básicos nacionais e assegurar a todos condições dignas de vida para só então ter alguma moral para alterar a lei criminal. A este bloco também pertencem os que de novo argumentam que não se devem tomar decisões no calor do momento, sob forte emoção, aconselhando a deixar baixar a poeira para então, como dantes, nada ser feito e o barco seguir navegando até a próxima comoção.
Uma análise mais racional do assunto indica que este pode ser um falso dilema. Num mundo globalizado no qual as crianças têm acesso quase ilimitado à informação e se tornam mentalmente adultos e capazes mais e mais cedo, determinar idades limites é tarefa altamente imprecisa. Em princípio se uma pessoa distingue o certo do errado e é responsável por sua conduta, deve responder por ela. Definir a partir de que idade a criança deve ser tratada como o agente responsável para efeitos da lei criminal é, em conseqüência, uma questão que deveria competir à psicologia da infância e da juventude. Por essa razão, muitas nações não fixam idade mínima criminal, deixando o tema para decisão do juiz. Informando sobre critérios adotados nos 44 países com 10 milhões ou mais de jovens com menos de 18 anos, a Wikipedia constata que em 39% a maioridade penal é fixada entre 7 e 9 anos; em 29% de 10 a 13 anos; em 25% de 14 a 16 anos e em 7% (Brasil, Colômbia e Peru) aos 18 anos. Estudiosos do tema dizem que idade é um conceito pratico, mas sem significado concreto no âmbito criminal, pois não estaria baseado em evidência científica sobre o grau de compreensão das crianças, como afirma o clássico informe Kilbrandon da Comissão sobre Crianças e Jovens Escocesas. Assim, prevaleceria o conteúdo do processo e as características do crime e não de quem o praticou. Não obstante, há regras universalmente aceitas: não tratar crianças como adultos, não expô-las ao sistema criminal antes de esgotar outras possibilidades de correção, excluir de processo os mentalmente incapazes.
No caso brasileiro, é preciso encontrar soluções práticas e factíveis. A redução da maioridade penal, uma decisão admissível, não tem justificativa se for uma medida isolada. É essencial que seja parte de um projeto de reformulação no qual sejam proporcionados recursos para assegurar acesso universal ao ensino até os 16 e logo os 18 anos; dar condições dignas aos estabelecimentos de detenção penal não os abarrotando de gente; adequar o sistema de punições, inicialmente fazendo cumprir 2/5 ao invés de somente 1/6 da pena para ter direito a liberdade condicional e aumentar o castigo a quadrilhas que utilizem menores; retirar as crianças das ruas; aumentar a remuneração de policiais que lidam com crianças e adolescentes; dotar as unidades que precisam cumprir o ECA das condições previstas na lei (cursos profissionalizantes, alojamentos salubres e com boa higiene, vestuário, alimentação, cuidados médicos, acompanhamento por psicólogos e equipe multiprofissional envolvendo a família); aumentar a remuneração de policiais que lidam com crianças e adolescentes.
O Brasil pode estabelecer uma plataforma mínima de ação e engajamento como essa para impedir o agravamento progressivo e acelerado do quadro atual. A prioridade não é a segurança. É o bem-estar dos brasileiros.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional