Há duas novidades na Venezuela atual, uma boa e outra ruim. A boa notícia é que, afinal, Hugo Chávez e seu confuso governo bolivariano vai embora porque está sendo derrubado. A má notícia é que o seu substituto será o próprio Hugo Chávez, em nova roupagem, sem pudor e sem mais ter de pedir licença ou desculpas a quem quer que seja, com uma coroa na cabeça para simbolizar o poder imperial e eterno. Não se pode dizer que esta é uma desgraça que despencará apenas sobre os seus súditos, embora um espírito mínimo de solidariedade latino-americana nos obrigue a prestar-lhes solidariedade, vertendo em sua homenagem as lágrimas que restaram do choro pelas 363 vítimas dos desastres aéreos da GOL e da TAM, e pelos cerca de 515 mortos nos terremotos de Ica e Chincha nos Andes peruanos. Diante da permanência ad infinitum do coronel, por certo já está na hora de lhe concederem uma patente militar mais elevada. Atenção Forças Armadas e gurus do socialismo do Século XXI, a sugestão é de apenas um artigo a mais na nova Constituição, denominando o novo presidente, o que deu o golpe no velho Hugo Chávez, de Generalíssimo ou Ultrageneral ou Comandante Supremo, algo assim que dê ao novo Hugo Chávez, mesmo respeitando sua simplicidade e seu linguajar repetitivo e sem sofisticações que por certo não mudarão, a exata dimensão do posto que de ora em diante será seu e somente seu.
As classes média e alta, que até hoje não reagiram porque não se viam ameaçadas e porque, afinal, as sobras dos enormes superávits da conta petróleo lhes garantiam uma vida boa, em breve descobrirão que as coisas mudaram, pois as reformas chavistas desta feita são profundas e as obrigarão a pronunciar-se, queiram ou não.
Ao tomar posse em 1999, Chávez jurou seu compromisso “diante de Deus e desta moribunda Constituição” que, em seguida, reformulou e que agora propõe uma vez mais mudar (quanto tempo durará esta?). Logo depois deu o primeiro autogolpe ao realizar uma eleição que garantiu um período presidencial renovado por seis anos, esquecendo que ele já exercia o poder a dezessete meses.
O pacote constitucional é amplo e radical, modificando 33 artigos para estabelecer, por exemplo, que: a) o Presidente da República poderá decretar Regiões Especiais Militares, nomear autoridades e criar províncias ou cidades federais em qualquer parte do território; b) o povo é o depositário da soberania e o exerce mediante o Poder Popular, cuja base são as Comunidades e as Comunas; c) para que os trabalhadores tenham tempo para o desenvolvimento pessoal a jornada de trabalho se reduz a 6 horas diárias; d) as empresas poderão ser de propriedade social, ou seja, comunal ou estatal; e) proíbem-se os monopólios e o latifúndio; f) a propriedade Privada é mantida, mas concorrerá com a Social exercida pelo Estado em nome da comunidade, a Coletiva que pertence a grupos sociais ou de pessoas, e a Mista combinando o poder público e outros atores; g) o Poder Nacional, os Estados e os Municípios descentralizarão seus serviços para os conselhos municipais e as Comunas; h) o mandato presidencial passa a ser de sete anos e permite reeleições; i) o Banco Central será uma “pessoa de direito público sem autonomia”; j) a Força Armada incluirá, ao lado do Exército, Marinha e Aeronáutica, a Guarda Territorial Bolivariana (atual Guarda Nacional) com funções de polícia e a Milícia Popular Bolivariana.
Comentando o que considera “um retorno a formas primitivas de dominação” e o refinamento da proposta, o jornal El Universal situa a nova Carta Magna como uma variante da Constituição cubana de 1976 e diz que os venezuelanos subestimaram a Chávez ao tratá-lo como um iletrado e capaz apenas de improvisações não se dando conta do que ele aprendeu em uma jornada pelo poder ou no poder que já perdura por 25 anos (sua primeira conspiração data de 1982). O medo de uma sovietização da sociedade venezuelana vem da consciência de que as comunas, comunidades e assembléias populares ao invés de surgirem de maneira espontânea ou pelo voto serão organizadas pelo Estado, sempre com o poder final de decisão na mão cerrada de Chávez. O Artigo 116 do “anteprojeto de Reforma Constitucional apresentado pelo Presidente da República Bolivariana da Venezuela Hugo Rafael Chávez Frias” diz, expressamente, que “o Poder Popular não nasce do voto nem de eleição alguma, e sim da condição dos grupos humanos organizados como base da população”, não acrescentando qualquer explicação quanto ao significado de tal condição. Outra preocupação básica diz respeito à nova forma de organização das Forças Armadas, que se afastam do caminho da profissionalização. O comando volta a ser unificado, as forças singulares perdem relevância e as milícias populares transformam-se na coluna vertebral da estrutura militar.
O projeto de socialização se sustenta em uma força superior, inteiramente concentrada na figura do Presidente que atua por intermédi9o de uma estrutura de instâncias federais que rompem com as atribuições hoje nas mãos das administrações dos Estados e Municípios, e em uma base comunitária que não se opõe ao poder estatal porque é legitimado e financiado por ele. Com uma oposição enfraquecida, incapaz de reagir e agora condenada a perder toda e qualquer eleição em que participe, os analistas políticos e os historiadores apostam em que as agudas contradições que o novo modelo de Estado contém poderão destrui-lo, repetindo o processo de desgaste interno que conduziu à surpreendente queda, em janeiro de 1958, do ditador Marcos Pérez Jiménez.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, Analista internacional
Autor do livro Guerra en los Andes (Ed. Abya-Yala – Quito)