O coronel Hugo Chávez Frias é, cada vez mais, um fator de desagregação da comunidade latino-americana de nações, ao gerar resistências crescentes toda vez em que resolve – e não se cansa de fazê-lo – intrometer-se nas disputas eleitorais, na economia e na política exterior dos países vizinhos. Sua obra maior, até aqui, é a de ressuscitar no continente o socialismo, tirando-o do papel secundário a que fora lançado pela queda do império soviético e pela mudança de orientação, pró-capitalista, do comunismo chinês. Identificando o que os economistas chamam de uma “janela de oportunidade”, Chávez deu-se conta de que os Estados Unidos de Bush na verdade tinham uma fraqueza, determinada pela posição de única força mundial dominante, que o impossibilitava de reagir e de atacar opositores radicais em seu próprio entorno: as Américas, seu velho quintal. A partir daí elegeu a grande economia do norte como inimiga e como a razão de sua existência e de sua permanência, se possível infinita, no poder. Descobriu que não necessitaria de projeto de governo, nem de auxiliares competentes, nem dos demais poderes de uma democracia regular, desde que contasse com petrodólares em abundância e controlasse as forças armadas.
Após cinco anos na presidência, Chávez com sua personalidade forte, conseguiu chegar a um auge de domínio no front interno que lhe permite nomear e desnomear sem resistência nem cara feia até mesmo de quem perde benesses. Sendo um militar, faz questão de exercer comando pleno sobre as Forças Armadas e de montar um governo no qual a presença verde-oliva é dominante. Esta semana deu novas provas disso. Primeiro, ao destituir o Chefe do chamado Estado Maior Presidencial, o general Alberto Müller Rojas ao qual já transformara numa figura decorativa e submissa. Müller confessou que há um ano não era recebido pelo presidente e que discordava (por debaixo dos panos) da partidarização das Forças Armadas, mas é um socialista bolivariano (seja lá o que isso signifique) e assim está disposto a seguir dando pleno apoio a Chávez. Segundo, ao substituir o Ministro da Defesa, que assumira a cerca de um ano apenas, empossando agora o general Rangel Briceño, até aqui o Comandante da Reserva e Mobilização Nacional, que já inscreveu e em parte treinou a mais de 9 milhões de homens e mulheres civis, 36% da população total de 25 milhões de venezuelanos. Para o novo ministro, o presidente concebeu uma tática de guerra que combina Forças Armadas profissionais e milícias populares (a reserva), as quais dirigiu com orgulho por considerá-las a base da guerra assimétrica ou do povo em armas. Mesmo que não exista qualquer guerra à vista, em seus intermináveis discursos no programa Fala Presidente de todo fim de semana, Chávez continua sendo capaz de convencer aos ouvintes de que o país está muito ameaçado de invasão devido às estratégicas reservas de petróleo e gás que possui. Por essa mesma quimera adquiriu um complexo sistema antiaéreo que lhe permitirá detectar baterias de aviões a 200 km de distância. Embora o coronel esteja se esforçando para brigar com alguém, resta saber quando a Venezuela conseguirá inimigos de tal porte.
Pouco afeito a lides diplomáticas e acostumado a impor parcerias oferecendo o dinheiro abundante dos poços de petróleo de Maracaibo e Puerto de la Cruz, desta feita o coronel exagerou. Declarando-se cansado de esperar e reagindo contrariamente ao que lhe pedira o chanceler brasileiro Celso Amorim (colocar água fria na fogueira), disse que o prazo para que os congressos do Paraguai e do Brasil aprovem o ingresso da Venezuela no Mercosul esgota-se em setembro próximo, depois do que retirará o pedido feito há um ano. Foi, rigorosamente, um ultimato (a tentativa do deputados venezuelanos em visita ao Brasil de explicar que seu presidente foi mal interpretado, não colou), definido no Houaiss como uma proposta final cuja rejeição acarretará o fim das conversações e o uso de uma ação direta. Numa guerra, é um comunicado enviado por um chefe militar ao inimigo exigindo rendição imediata, sob ameaça de obtê-la por meios mais violentos.
Não obstante o evidente absurdo da imposição a dois Parlamentos autônomos de outros países, é possível que o vencedor dessa queda-de-braço seja Hugo Chávez que, uma vez mais, não agiu de forma impensada e atacou quem podia ser atacado. Certamente não faria isso com os argentinos, que lhe devolveriam a grosseria na mesma moeda e é possível que tenha se arrependido da precipitada saída da CAN (Comunidade Andina de Nações) que ao invés de esfacelar-se, conforme suas previsões, fortaleceu-se. Fez com o Brasil cujo povo e cujos governantes têm uma longa fama de serem cordatos e de não reagirem a ofensas. No caso específico conta, ainda, com a evidente incapacidade do Congresso brasileiro em tomar uma atitude independente da vontade do Executivo, num momento marcado por escândalos internos que envolvem, entre muitos outros, o presidente da Casa, Renan Calheiros. Declarações do presidente Lula (vou conversar com ele para saber o que de fato está acontecendo) e do chanceler de fato, Marco Aurélio Garcia, deixam entreaberta a porta da conciliação. O congresso paraguaio sofre de enfermidades parecidas às que afetam o legislativo verde-amarelo e deverá aguardar os acontecimentos para então pronunciar-se, sem criar problemas.
Caso os políticos não se entendam, poderão prevalecer os interesses econômicos que, no entanto, são distintos para os principais atores envolvidos. No lado brasileiro, os empresários querem a abertura do mercado venezuelano que é um tradicional importador de bens de alto valor agregado e, embora pequeno, é bem mais rico e tem potencial de faturamento muito superior ao dos demais países andinos e, quem sabe, também ao dos vizinhos do Prata. Na verdade a Venezuela há muito tempo acostumou-se a importar de tudo, pois internamente quase nada produz. Mesmo assim, seus industriais temem que um Mercosul ampliado permita a entrada dos produtos brasileiros que, sabem, será avassaladora, liquidando com as débeis empresas nacionais que possuem e que só sobrevivem graças a potentes subsídios do governo chavista. Em conseqüência, Lula recebe pressões para aceitar a entrada da Venezuela e Chávez ouve conselhos do setor produtivo nacional não ligado ao petróleo e ao gás para desistir da candidatura. Os argumentos de que um Mercosul com Bolívia e Venezuela é fundamental para a construção de uma matriz energética internacionalmente competitiva não têm consistência, pois nada impede que uma associação específica nesse campo seja firmada, com ou sem as complicações de uma união aduaneira ou um livre mercado com seis sócios que não se entendem.
* Escritor, Analista internacional, Autor do livro “Guerra en los Andes” (Editora Abya-Yala)