O Chifre da África, formado pela Etiópia, Djibouti, Eritréia e Somália, conhecido já no século 25 A.C. pelos egípcios como “Terra de Deuses”, não deu certo na vida. Do Oceano Índico, pelo Golfo de Aden, chega-se ao Mar Vermelho que separa a África da Ásia e por onde Moisés, após separá-lo em dois, teria conduzido os judeus no Êxodo. Hoje esta é a região mais miserável do mundo: numa lista de 231 países, a Somália com um PIB de 500 dólares per capita está em último, seguido de perto pelos seus três vizinhos (U$ 700 cada). O dinheiro por lá, cada vez mais escasso, é desperdiçado em guerras e revoluções intermináveis, agravando a miséria num ciclo perverso difícil de ser rompido.
O povo somali, cujo último período de prosperidade real ocorreu nos anos anteriores à independência de 1959 (antecedida pelos derradeiros momentos de domínio italiano, logo após o término da II Guerra mundial), assistiu indefeso as sangrentas disputas entre os vários Senhores da Guerra – na verdade chefes de gangues e bandos em constantes lutas entre si – que derrubaram o regime do ditador Siyad Barre e desde 1991 assaltam, matam, estupram sem controle numa terra onde não existe um governo central. No ano passado, em junho, o Conselho dos Tribunais Islâmicos (CTI) que há dez anos se encarregava, por conta própria, dos julgamentos, combatia o narcotráfico, dirigia escolas e oferecia assistência médica ao povo, derrotou os Senhores da Guerra e tomou conta da capital Mogadíscio e de parte do país, sob aplausos dos somalis, quase todos de religião muçulmana, que viam neles um alivio para o estado de guerra permanente que já os levara a batalhas perdidas contra a Etiópia e a enfrentamentos entre os chefes de clãs familiares que exercem o verdadeiro poder.
A festa dos Tribunais Islâmicos durou pouco. Foram derrubados no final de dezembro e, ao menos por enquanto, totalmente desarticulados, depois que ameaçaram reacender a guerra anti-etíope a fim de recuperar o deserto de Ogaden (perdido em 49 por decisão da ONU) e tentaram ocupar a cidade de Baidoa, sede do Governo de Transição apoiado pela comunidade internacional e cujo primeiro-ministro, Ali Mohammed Ghedi, avançou de maneira avassaladora com o apoio de soldados e tanques do exercito da Etiópia para, afinal, impor sua autoridade a todo o território nacional. Nada está garantido e a paz deve ser temporária, pois os etíopes, odiados pelos somalis pela história de disputas e matanças que historicamente os separam e porque são predominantemente cristãos, afirmam que precisam ir embora. Não têm recursos para sustentar uma tropa no exterior, ainda mais porque são considerados invasores e sabem que em seguida começarão a sofrer ataques guerrilheiros. Na verdade, a intervenção da Etiópia se deu em resposta ao apoio de sua arquiinimiga Eritréia (país de governo laico) aos Tribunais Islâmicos, e não por motivos ideológicos ou religiosos.
A solução poderia estar numa força internacional formada pela União Africana em nome da ONU e, evidentemente, com sustentação financeira norte-americana que considera a Somália um foco de terrorismo da Al-Qaeda desde que lá descobriu pelo menos três supostos assessores de Bin Laden: o comoriano (das Ilhas Comoros) Fazul Mohamed, o sudanês Abu Talha Al-Sudani e o queniano Saleh Nabhan, responsáveis entre outros pelos atentados às embaixadas dos EUA em Nairóbi e Dar-es-Salaam. Bush poderá contribuir com recursos, mas certamente não se disporá a enviar tropas com medo de repetir a desastrada intervenção de 1993, no início do governo Clinton, quando foi travada a Batalha de Mogadíscio (tema do filme A queda do Falcão Negro de Ridley Scott) contra o Senhor da Guerra Mohamed Farah Aidid que se tornou famoso ao arrastar pelas ruas, sob as lentes da TV, os corpos de dezoito soldados rangers norte-americanos. As imagens correram o mundo e imediatamente os EUA retiraram da Somália seus 28 mil soldados, sendo logo seguidos pela ONU num período em que o país, deixado à própria sorte, voltou a afundar na barbárie.
As acusações do governo Bush classificando a Somália como uma base terrorista logo após o 11 de setembro de 2001, agravaram ainda mais os seus problemas, principalmente depois que os ativos da empresa de telecomunicações al-Barakaat, a maior do país, foram congelados nos bancos dos EUA, forçando-lhe a falência. O anúncio de que os Talibãs haviam tomado a Somália não se mostraram verdadeiros. O CTI é uma união de vários clãs somalis, com predomínio do principal deles, o clã Hawiye cujo líder, o xeque Sharif Cheikh Ahmed, vinha se mostrando moderado até que o agravamento da luta fez com que fosse substituído pela velho militante fundamentalista Hassan Dawer Aweys. Os interesses maiores dos Hawiye são de domínio interno e são tão influentes que o próprio atual 1º ministro Ali Ghedi pertence à etnia. A fama aumentou quando, logo que tomaram o poder em Mogadíscio, proibiram assistir a Copa do Mundo de futebol e o corte de cabelo pelos jovens punk, afro ou rasta.
Contudo, a Somália não é o Afeganistão e os Talibãs que para lá fugiram não têm o apoio dos seminários paquistaneses. Isso não significa que, caso não haja um forte apoio humanitário a uma terra sem qualquer apelo econômico e cuja importância é exclusivamente estratégica pela posição geográfica que ocupa (é o acesso para o velho Caminho para as Índias e está em frente da Península Arábica), a situação política não possa piorar. Será preciso, além do milagre de que a ONU e a comunidade internacional acordem para a necessidade urgente de socorrer o Chifre da África, que as cíclicas secas e os Tsunamis (o último, em 2004, também passou por lá) lhe dêem uma trégua.


Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional.
Autor da ficção: Zim, uma aventura no sul da África